terça-feira, 22 de janeiro de 2013

LA GRANDE BOUFFE


Como apreciador de cinema (que me julgo) o título da última crónica do Prof César das Neves, «Estão a ver o filme?», despertou-me mais que a habitual curiosidade semanal (o autor publica às segundas-feiras no DN) e foi com acrescido interesse que iniciei a sua leitura, na expectativa de ver que comungávamos de interesses comuns além da recusa ao novo Acordo Ortográfico.

Confesso a minha decepção quando constatei que a referência do título era meramente figurativa e que o “filme” do Prof. era tão-somente o famigerado e amplamente vilipendiado estudo do FMI produzido para que aceitemos pacificamente mais uma redução, agora duns módicos 4 mil milhões de euros, na despesa pública.

Diga-se em abono da verdade que o Prof. César das Neves não se fica pela confortável posição de subscrever o teor do documento, reconhecendo que «[c]ortar 4000 milhões de euros de forma permanente à despesa pública não é a solução» e que «…quem recusa tem de apresentar cortes alternativos de valor equivalente. Senão diz só uma tolice ociosa de quem não está a ver o filme». O busílis da sua argumentação (comum a quase todos os apoiantes das políticas neoliberais em curso) é que além de defender um número sem fundamentação adicional para a sua dimensão pretende ainda que, ao contrário do que no seu dizer afirmam os detractores da medida, «… grande parte dos supostos direitos não foram de todo adquiridos, mas atribuídos irresponsavelmente com dinheiro alemão», afirmação que volta novamente a não fundamentar o que justifica prontos reparos.

Primeiro; considerando que parte significativa das medidas até agora tomadas e das já anunciadas se traduz na redução dos encargos com pensões de aposentação e que estas (excepção feita aos regimes extraordinários dos cargos políticos) resultam dos descontos efectuados pelos actuais beneficiários durante a sua vida activa, só com manifesta aleivosia e um completo desconhecimento técnico é que poderão ser apelidados de direitos não adquiridos.

Segundo; desconheço (situação de ignorância em que não estou seguramente isolado) em que dados estatísticos se baseou o Prof. César das Neves para apontar peremptoriamente a nacionalidade dos fundos, pois excepção feita aos 78 mil milhões atribuídos ao abrigo do PAEF acordado com a “troika” e parcialmente financiado através de fundos dos estados europeus (a Alemanha poderá ser a maior contribuinte mas não é seguramente a única) o restante da dívida pública portuguesa estará nos balanços do sector financeiro e este, como é do conhecimento geral, além de privado não tem nacionalidade.

Terceiro; contrariamente ao afirmado, muitos dos críticos da opção pelas políticas de austeridade em vigor têm apontado alternativas, pelo que recordo aqui que para alcançar a poupança dos inexplicados 4 mil milhões bastaria reduzir os encargos com o serviço duma dívida pública que só em 2012 ultrapassou os 8 mil milhões de euros. A verdade é que se propostas deste jaez não chegam ao grande público isso deve-se tão somente ao facto dos meios de comunicação escolherem criteriosamente a quem dão voz.


Posto isto, e para manter o registo no âmbito cinematográfico com que foi iniciado, a pergunta que deixo a todos é se tudo isto não lhes lembra não um qualquer filme, mas especificamente A GRANDE FARRA (alegoria onde quatro personagens de meia idade e bem sucedidos na vida resolvem terminar os seus dias a comer, filmada em 1973 pelo italiano Marco Ferreri, com o título original «La grande bouffe») onde uns poucos se arrogam o direito de “comer tudo” enquanto a restante maioria “morre de fome”…

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