terça-feira, 17 de junho de 2014

FRAGMENTOS DO CRESCENTE FÉRTIL

Muitos serão os motivos invocáveis (desde a crise na Zona Euro, a famigerada situação político-económica nacional, o aparente apaziguamento com a saída das tropas dos EUA ou até a situação no resto do Médio Oriente) para que a situação no Iraque tenha deixado de ser presença marcante neste espaço. Não que a criminosa invasão decidida por Bush e Blair esteja esquecida (que o digam as populações locais e a generalidade dos povos do Médio Oriente, com especial destaque para o sírio) e ainda menos que os seus perniciosos efeitos se tenham desvanecido, antes e pelas piores razões surgiram novos focos de conflito, prontamente seguidos de reacções como aquela onde o fanático Tony «Blair quer nova ofensiva militar do Ocidente no Iraque».

Saddam Hussein poderia ser o déspota que os cândidos dirigentes ocidentais da época passaram a descrever quando ameaçou começar a cotar o petróleo iraquiano em euros, mas foi, em grande medida, um forte travão às múltiplas divergências étnicas e religiosas numa região charneira para xiitas, sunitas e curdos, que inclusivamente potenciou alguma acalmia na região curda situada no interior das fronteiras turcas.

Parte nuclear do milenar Crescente Fértil e Berço da Civilização, os vales do Tigre e do Eufrates voltaram recentemente ao centro das atenções com a notícia de que organizações sunitas de «Insurrectos tomam Mossul em assalto-relâmpago». A ocupação da segunda maior cidade do país, um dos principais centros da indústria petrolífera e um importante centro cultural (a menos de 500 km da capital), seguida da notícia que «Jihadistas ocupam mais duas cidades iraquianas» sem resistência (no caso as cidades de Baiji, importante centro de refinação petrolífera, e Tikrit, cidade natal de Saddam a apenas 150 km da capital), coloca os «Rebeldes às portas de Bagdade», que o mesmo é dizer a um pequeno passo de aniquilar os benefícios norte-americanos, impostos na sequência da II Guerra do Golfo; estes desenvolvimentos já fizeram soar os alarmes em Washington e da capital do país que é o principal responsável pela situação caótica que vivem os iraquianos, chega a notícia que o presidente «Obama está a analisar "todas as opções" sobre Iraque», pelo que deverão regressar brevemente os raids aéreos sobre o Iraque.

Mas talvez mais grave que tudo isso é a constatação de reduzida capacidade de resposta militar dumas forças armadas que pouca ou nenhuma resistência opuseram, a ponto do governo do xiita Nouri Al-Maliki ter anunciado a distribuição de armas à população, no que aparenta uma manobra desesperada face a uma situação que nem sequer se pode designar como novidade, tantas têm sido as revoltas contra o que sunitas, curdos e rivais xiitas designam de deriva autoritária do primeiro-ministro, que estará nas origens próximas de mais esta rebelião sunita.


É claro que no discurso das autoridades iraquianas não falta a menção do seu papel na luta contra o terrorismo regional – leia-se a Al-Qaeda e o movimento sunita conhecido como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), um poderoso ramo dissidente da Al-Qaeda que procura implantar um estado teocrático nas áreas de maioria sunita da Síria e do Iraque – facto ampliado pela pronta reacção de apoio chegada de Damasco e do presidente Bashar Al-Assad (também ele a braços com uma guerra civil onde pontifica o mesmo ISIS), que tal como Al-Maliki se esforça pela sobrevivência dum regime contra a militância das respectivas minorias sunitas, que – paradigma da “real politik” – conhecem do lado sírio da fronteira um apoio disfarçado dos EUA contra o regime alauita de Bashar Al-Assad (apoiado pelo regime xiita de Teerão) e do lado iraquiano a oposição à tentativa de substituição do regime pró iraniano de Al-Maliki.

Se esta teia de interesses regionais parecer pouco intricada, deve ainda juntar-se o apoio da Turquia (tanto mais expressivo quando já foi noticiado que a «Turquia pede reunião urgente da NATO para discutir situação do Iraque») ao governo dum Al-Maliki que procura negociar desesperadamente com a mesma minoria curda que o regime de Ancara se esforça em erradicar e o facto do extremismo do ISIS (a organização liderada por Abu Bakr Al-Baghdadi que ocupou o vazio deixado no Iraque pela Al-Qaeda e que tem assumido a responsabilidade pelas acções terroristas que na última década inviabilizaram a pacificação do país) ter levado o actual líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, a distanciar-se-lhe.

Ao contrário da ambígua estratégia ocidental para a região – bem evidente perante a recente afirmação onde o alto responsável da administração Obama John «Kerry admite colaborar com o Irão contra islamitas iraquianos» ou a notícia de que «Londres reabre embaixada em Teerão» –, os islamitas do ISIS têm definido de forma clara e precisa um objectivo – a unificação dum território de maioria sunita repartido entre a Síria e o Iraque nos termos do velhinho acordo de definição de fronteiras coloniais entre ingleses e franceses (o acordo Sykes-Picot), assinado em 1916 – e estão a revelar-se capazes de o alcançar. A grande incógnita é o que dele farão!

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