Continuando o
registo da política-espectáculo, em vésperas de mais um Conselho de Estado (e
da correspondente manifestação popular em Belém) e pouco depois de noticiado
que «Eurogrupo
fecha sétima avaliação do programa de ajustamento e liberta ajuda», assistimos
à verdadeira farsa quando «Cavaco
afirma que a sétima avaliação da troika é “inspiração de Nossa Senhora
de Fátima”»!
A afirmação
pode, obviamente, ser objecto de várias leituras; Cavaco Silva pode ter aproveitado
a presença numa cerimónia de entrega de prémios científicos para reafirmar as
suas convicções religiosas e afastar qualquer possível ligação ao racionalismo
agnóstico, caso em que revelou a mais absoluta falta de tacto e até de respeito
por quem o terá convidado, pode em alternativa ter ensaiado uma “graçola” ao
estilo americano, caso de todo em todo pouco provável conhecida que é a sua
postura de seriedade e rigor e evidente a sua completa desadequação ao
desempenho de comediante, ou acredita piamente naquilo que disse, que é das
três alternativas a mais óbvia e, claramente, a pior de todas.
As convicções
religiosas do casal presidencial (a confirmar-se que a inspiração veio de Maria
Cavaco Silva) pertencem ao seu foro pessoal e devem ser respeitadas desde que
nele permaneçam, mas produzir uma afirmação daquelas é tanto mais inconveniente
quanto, a propósito da situação política nacional, o mesmo Cavaco lembrou
circunspectamente que «“É
preciso evitar exposições públicas de divergências” na coligação».
Por fim, se um
acontecimento tão previsível quanto a conclusão favorável do processo de
avaliação da “troika” (quem de bom
senso esperará que os “juízes” não julguem favoravelmente em causa própria)
mereceu este tipo de comentário presidencial, que dirá o mesmo Cavaco quando,
concluído o PAEF, se ensaiar com sucesso uma verdadeira emissão de dívida? Será
que quando o IGCP (Agência de Gestão da
Tesouraria e da Dívida Pública) lograr realizar um verdadeiro leilão
participado – no lugar de mais uma farsa que foi apresentar uma operação
sindicada, como a recentemente organizada por um conjunto de seis bancos
mandatados para vender a dívida a um número restrito de “interessados” e a
preço irresistível, agravada ainda pelo tacto de Vítor Gaspar nem sequer se ter
coibido de afirmar que a «Emissão de dívida foi um “grande sucesso”»
– veremos o presidente partir em peregrinação de acção de graças ao Senhor
Santo Cristo ou ao Divino Espírito Santo, para não mais regressar?
Não contente
com uma referência de resultado e gosto duvidosos que
deixa pairar a pertinente questão de sabermos Cavaco Silva mergulhado no mais
profundo desespero, lendo no I
que «Depois
de Fátima, presidente invoca S. Jorge», já nem pairam dúvidas de quando
voltará a invocar alguma figura da hagiologia
cristã, nem de que este evidente pendor presidencial para o misticismo merece
análise profunda e abalizada doutros que reúnam maiores conhecimentos que os
meus. Ainda assim, sempre me atrevo a lembrar (ou, porque não, a lançar mais
achas para a fogueira) que a última referência pode pressagiar alguma até agora
oculta tendência sincrética de Cavaco Silva, pois a figura de São Jorge além de
transversal a igrejas como a católica, a ortodoxa e a anglicana é ainda figura
maior do culto umbanda (de origem afro-brasileira), sob o nome de Ogum.
Reconfirmada a
total inépcia e desadequação de Cavaco Silva para a função que desempenha e
agora que até já circulam notícias de que a «Alemanha
junta-se ao coro de críticas contra a austeridade das troikas», a que ponto
poderá esta sua nova e perturbante faceta acarretar mais dissabores e vexames a
somar à penúria e vergonha a que nos condenaram os seus apaniguados?
Observada a
questão à luz crua do racionalismo, esta recém-descoberta veia mística poderá revelar afinal uma mera tentativa para esconder as tendências que por
essa Europa eclodem contra os interesses da minoria que tem manobrado a crise
em proveito próprio; críticas e denúncias que são cada vez mais frequentes e
começam já a surgir de sectores cada vez mais próximos dos poderes
estabelecidos, como recentemente aconteceu com um relatório
publicado pelo “think tank” europeu
Bruegel onde é analisada a actuação das “troikas” na Grécia, Irlanda e Portugal e cujas conclusões, não
sendo demolidoras também não são propriamente favoráveis.
Embora para
uma larga percentagem de europeus os ventos de mudança – como os prenunciados
pelas mais recentes posições alemãs, com a notícia de que até já a chanceler «Merkel
acusa Barroso e troika de serem os culpados da austeridade», ou o recente
redireccionamento da política francesa onde «Hollande
defende criação de governo permanente e dívida comum para a Zona Euro» – possam
chegar demasiado tarde, pode começar a questionar-se a quem restará a fé como
recurso salvador: aos milhões que têm vindo a sofrer os horrores das políticas
recessivas ou aos muito poucos que mais que tudo receiam perder um pouco do
muito que têm vindo a acumular.
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