Para quem
eventualmente não conheça, Boaventura Sousa Santos é uma das figuras nacionais
proeminentes no campo das ciências sociais; investigador e professor
universitário, além de director do Centro de Estudos Sociais e Coordenador
Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa foi fundador e
director do Centro de documentação 25 de Abril, tem desenvolvido um vasto
trabalho no seu campo de actuação. Voz escutada internacionalmente, é presença
regular nas páginas da revista VISÃO nem
sempre vertida para o conteúdo na internet.
Por isso, pela
relevância da opinião de quem viveu a época e sobre ela tanto tem reflectido,
como contributo para a celebração da data mas, principalmente, como convite à
reflexão geral aqui deixo um texto publicado no início este mês sobre:
«O 25
do Abril que não aconteceu
Estamos
a entrar no mês das celebrações. Vão organizar-se muitas peregrinações ao 25 de
Abril de 1974, com trajetos e até destinos diferentes, como se fossem pacotes
de turismo da memória. Um tempo tão importante pelos lugares visitados como
pelos evitados, pelo que vai ser dito como pelo que não vai ser dito. Remeto-me
a imaginar os lugares evitados, o não-dito, propondo-me um exercício de
sociologia das ausências. São três os 25 de Abril que vão estar ausentes.
Para os poderosos, as elites de sempre
(latifundiários, grandes industriais. banqueiros), todas com «sólida formação
moral» certificada pela PIDE, o 25 de Abril foi uma dor de cabeça, um
desconforto inoportuno. Para alguns, até pareceu um bom negócio, mas foi sol de
pouca dura. A partir de 11 de Margo de 1975, transformou-se numa ameaça que lhes
causou medo e os obrigou a protegerem-se. Foi um susto passageiro, pois em 25
de Novernbro do mesmo ano foi-lhes dito ao ouvido (para os portugueses comuns
não ouvirem) que, com o tempo, tudo voltaria ao normal, Não seria sequer
necessério criar uma comissão de verdade e reconciliação e muito menos uma que
incluisse, além destas, justiça.
Quarenta
anos depois, quem teve medo já nem se lembra e quem lhes causou medo tem medo
de lhes lembrar.
O
25-DE-ABRIL-DOS-REVOLUCIONÁRIOS-AFERVENTADOS.
Foi
a fulguração das ruas, das praças, dos campos. das escolas. das famílias, dos
quartéis a incendiar a imaginação duma sociedade justa, como se a felicidade estivesse
à mão. a opressão secular fosse um pesadelo passageiro e o futuro distante e
radioso tivesse chegado aqui e agora para ficar. Havia partidos que se diziam
de vanguarda mas nem retaguarda eram da alegria que transbordava.
O
País eram trabalhadoras rurais analfabetas a vasculharem maravilhadas as
gavetas íntimas das senhoras da herdade; operários empolgados a tentarem
convencer-se a si próprios de que tinham direitos contra o patrão; prostitutas
a organizarem-se em sindicatos; jovens a fazerem sexo tão incessantemente
quanto faziam cartazes e manifestos; camponeses a organizar «corporativas» por
soar mais familiar do que cooperativas; jornalistas a poderem escrever
socialismo ou comunismo como se fosse anúncio de filme em cartaz; professores a
poderem lecionar Karl Marx e já não Carlos Marques como anteriormente faziam
para despistar os informadores da PlDE no fundo da sala. Tudo aferventado
porque mal cosido e a escaldar. A quem já foi senhor dos seus sonhos, mesmo que
por pouco tempo, custa lembrar, em tempos de servidão, que já esteve levantado
do chão.
O-25-DE-ABRIL-DAS-GRANDES-MANOBRAS.
No
ano anterior, a primeira experiência de socialismo democrático do século XX. o
governo de unidade popular de Salvador Allende, no Chile, tinha sido esmagada
por militares a soldo da CIA. Portugal corria o risco de repetir a experiência.
o que, do ponto de vista dos EUA, seria ainda mais grave por ocorrer na Europa ocidental,
uma zona de influência sua nos termos do Tratado de Yalta.
Kissinger
considerou a invasâo do pals com o apoio da NATO, mas a social-democracia europeia
(sobretudo alemã) opôs-se e propôs que, em vez de militares, viesse dinheiro, muito
dinheiro, para fortalecer os partidos e os movimentos sociais que se opunham ao
«modelo soviético». Assim se fez e os resultados foram os esperados. Portugal ficou
então em dívida para com os alemães e assim continua hoje. Mudam-se os tempos, mudam-se
as dívidas mas não o endividamento. Quarenta anos depois, seria impertinente
falar de imperialismo norte-americano quando afinal ele é agora europeu.
O
25 DE ABRIL foi a megaexpectativa de ontem que está na origem da megafrustração
de hoje. Aos peregrinos ao 25 de Abril de 1974 eu aconselharia que acampassem
por lá durante um tempo, tomassem o ar livre, cheirassem o alecrim,
conversassem sobre Portugal como se fosse outra vez coisa sua e, em vez de
regressarem, organizassem uma expediçãoo ao presente e, já que estamos a falar
de peregrinos, expulsassem os vendilhões do templo.
Boaventura
de Sousa Santos»
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