sexta-feira, 25 de abril de 2014

O 25 DE ABRIL VISTO POR BOAVENTURA SOUSA SANTOS

Para quem eventualmente não conheça, Boaventura Sousa Santos é uma das figuras nacionais proeminentes no campo das ciências sociais; investigador e professor universitário, além de director do Centro de Estudos Sociais e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa foi fundador e director do Centro de documentação 25 de Abril, tem desenvolvido um vasto trabalho no seu campo de actuação. Voz escutada internacionalmente, é presença regular nas páginas da revista VISÃO nem sempre vertida para o conteúdo na internet.

Por isso, pela relevância da opinião de quem viveu a época e sobre ela tanto tem reflectido, como contributo para a celebração da data mas, principalmente, como convite à reflexão geral aqui deixo um texto publicado no início este mês sobre:

«O 25 do Abril que não aconteceu

Estamos a entrar no mês das celebrações. Vão organizar-se muitas peregrinações ao 25 de Abril de 1974, com trajetos e até destinos diferentes, como se fossem pacotes de turismo da memória. Um tempo tão importante pelos lugares visitados como pelos evitados, pelo que vai ser dito como pelo que não vai ser dito. Remeto-me a imaginar os lugares evitados, o não-dito, propondo-me um exercício de sociologia das ausências. São três os 25 de Abril que vão estar ausentes.

O 25-DE-ABRIL-DE-QUEM-DEVE-TEME.

Para os poderosos, as elites de sempre (latifundiários, grandes industriais. banqueiros), todas com «sólida formação moral» certificada pela PIDE, o 25 de Abril foi uma dor de cabeça, um desconforto inoportuno. Para alguns, até pareceu um bom negócio, mas foi sol de pouca dura. A partir de 11 de Margo de 1975, transformou-se numa ameaça que lhes causou medo e os obrigou a protegerem-se. Foi um susto passageiro, pois em 25 de Novernbro do mesmo ano foi-lhes dito ao ouvido (para os portugueses comuns não ouvirem) que, com o tempo, tudo voltaria ao normal, Não seria sequer necessério criar uma comissão de verdade e reconciliação e muito menos uma que incluisse, além destas, justiça.

Quarenta anos depois, quem teve medo já nem se lembra e quem lhes causou medo tem medo de lhes lembrar.

O 25-DE-ABRIL-DOS-REVOLUCIONÁRIOS-AFERVENTADOS.

Foi a fulguração das ruas, das praças, dos campos. das escolas. das famílias, dos quartéis a incendiar a imaginação duma sociedade justa, como se a felicidade estivesse à mão. a opressão secular fosse um pesadelo passageiro e o futuro distante e radioso tivesse chegado aqui e agora para ficar. Havia partidos que se diziam de vanguarda mas nem retaguarda eram da alegria que transbordava.

O País eram trabalhadoras rurais analfabetas a vasculharem maravilhadas as gavetas íntimas das senhoras da herdade; operários empolgados a tentarem convencer-se a si próprios de que tinham direitos contra o patrão; prostitutas a organizarem-se em sindicatos; jovens a fazerem sexo tão incessantemente quanto faziam cartazes e manifestos; camponeses a organizar «corporativas» por soar mais familiar do que cooperativas; jornalistas a poderem escrever socialismo ou comunismo como se fosse anúncio de filme em cartaz; professores a poderem lecionar Karl Marx e já não Carlos Marques como anteriormente faziam para despistar os informadores da PlDE no fundo da sala. Tudo aferventado porque mal cosido e a escaldar. A quem já foi senhor dos seus sonhos, mesmo que por pouco tempo, custa lembrar, em tempos de servidão, que já esteve levantado do chão.

O-25-DE-ABRIL-DAS-GRANDES-MANOBRAS.

No ano anterior, a primeira experiência de socialismo democrático do século XX. o governo de unidade popular de Salvador Allende, no Chile, tinha sido esmagada por militares a soldo da CIA. Portugal corria o risco de repetir a experiência. o que, do ponto de vista dos EUA, seria ainda mais grave por ocorrer na Europa ocidental, uma zona de influência sua nos termos do Tratado de Yalta.
Kissinger considerou a invasâo do pals com o apoio da NATO, mas a social-democracia europeia (sobretudo alemã) opôs-se e propôs que, em vez de militares, viesse dinheiro, muito dinheiro, para fortalecer os partidos e os movimentos sociais que se opunham ao «modelo soviético». Assim se fez e os resultados foram os esperados. Portugal ficou então em dívida para com os alemães e assim continua hoje. Mudam-se os tempos, mudam-se as dívidas mas não o endividamento. Quarenta anos depois, seria impertinente falar de imperialismo norte-americano quando afinal ele é agora europeu.

O 25 DE ABRIL foi a megaexpectativa de ontem que está na origem da megafrustração de hoje. Aos peregrinos ao 25 de Abril de 1974 eu aconselharia que acampassem por lá durante um tempo, tomassem o ar livre, cheirassem o alecrim, conversassem sobre Portugal como se fosse outra vez coisa sua e, em vez de regressarem, organizassem uma expediçãoo ao presente e, já que estamos a falar de peregrinos, expulsassem os vendilhões do templo.

Boaventura de Sousa Santos»

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