sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O QUE NASCE TORTO…

A segunda ronda de negociações de paz para a Síria, que decorre na Suíça, não podia alcançar um objectivo palpável tantas foram as incertezas e as condicionantes que desde o início a rodearam. Começando pelos avanços e recuos entre as diversas facções da oposição ao regime de Bashar al-Assad, passando pelas hesitações de americanos e russos (principais patrocinadores da iniciativa) e concluindo na vergonha que constituiu o anúncio, por Ban Ki-moon, que foi o «Irão convidado para conferência de paz de Genebra» para, sob pressão norte-americana, vir mais tarde a saber-se que a «ONU retira convite a Irão para conferência sobre Síria».

Não se estranhe que, depois do pretexto invocado para o “desconvite” – o regime iraniano não aceitou o reconhecimento dos termos da primeira ronda de negociações implicando a obrigatoriedade da substituição do presidente sírio –, chegue de Teerão uma reacção onde o «Presidente do Irão duvida do sucesso de Genebra II», tanto mais que à saída de Damasco a «Delegação síria avisa que ninguém pode tocar em Assad».

A polémica dos convites não parece esgotar-se com o episódio iraniano, pois uma observação mais atenta da agenda e considerandos em torno da conferência deixa perceber que outro convidado indispensável, a Paz, terá ficado à porta.


Como se não bastassem estas divergências, o período que antecedeu a realização da conferência foi fértil na exposição das contradições que minam a própria oposição ao regime alauita. Assim enquanto os promotores (ONU, EUA e Rússia) discutiam a participação do Irão – país que na sequência do abrandamento do seu programa nuclear e do consequente desanuviamento das sanções internacionais vai readquirindo o direito ao estatuto de potência regional – a cada vez mais fragmentada oposição síria conheceu novos episódios de dissensão quando o Conselho Nacional Sírio (o principal grupo da oposição) anunciou a sua saída da Coligação Nacional Síria, depois desta organização ter aceite deslocar-se à Suíça sem a garantia prévia da saída de Bashar al-Assad.

O cinismo que habitualmente grassa nos meios diplomáticos (e que tem abundado de sobremaneira na crise síria) fica bem evidente em toda esta questão quando é motivo de notícia que o «Governo e oposição síria estiveram cara a cara, mas não falaram de paz», ou quando, conhecendo sobejamente as “razões” que justificam o inverso, alto diplomata (como Rui Machete) declara que preferia todos os intervenientes na reunião de paz quando, para mais, é conhecido que pouco ou nada fez para contrariar a menorização do papel da UE na crise síria.

Enquanto isto, num terreno onde se confrontam interesses tão diversos quanto os das grandes potências (EUA, Rússia e China), os das potências regionais (Arábia Saudita, Turquia e Irão), os dos financiadores e fornecedores de armamento (todos os anteriores), vive-se uma situação cada vez mais caótica e difícil para as populações, situação que Maria João Tomás resume assim no artigo do DN, «Genebra II, ou a cimeira para gerir a guerra na Síria»:

Os mais afectados com esta guerra são, obviamente, todos os sírios, excluídos perante os interesses externos em jogo neste tabuleiro de xadrez. Os rebeldes combatem agora em duas frentes, contra as tropas de Bashar al-Assad, que têm armamento russo, e contra os jihadistas que têm armas americanas, confiscadas aos coitados dos rebeldes.

Desde o início do conflito já morreram cento e trinta mil pessoas e há nove milhões e meio de deslocados e refugiados que lutam para sobreviver à guerra, à fome, às doenças e também à neve e ao frio que tem feito no Médio Oriente. Os países de acolhimento já não conseguem fazer mais, e os sírios, sem nada, fazem tudo o que podem para ter comida e segurança, acabando como vítimas de tráfico humano ou escravos sexuais, enganados por tudo e por todos, chegando a pagar exorbitâncias para conseguirem chegar à Europa, mas muitos ficam pelo caminho.

Em resumo, tudo aponta para o malogro de mais esta iniciativa cujos intervenientes parecem esquecer à partida factos tão relevantes quanto: o acréscimo de legitimidade do regime alauita – adquirido por via das vitória militares no terreno e da acção diplomática bem expressa no recuo da intervenção internacional e no início do programa de destruição do armamento químico – e o facto de governo e oposição se mostrarem pouco disponíveis a cedências, ficando desde já a garantia que estaremos perante «Uma conferência de paz que não vai parar a guerra» e que, como em tantas outras ocasiões, continuarão a ser os interesses e o bem-estar das populações os principais prejudicados.

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