segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A CRISE DAS DÍVIDAS – O FACTOR HUMANO

Depois de ter iniciado no “post” «A CRISE DAS DÍVIDAS – AS ORIGENS» a publicação do artigo assinado pelo presidente equatoriano Rafael Correa:

«A União Europeia endividada reproduz os nossos erros

Rafael Correa

Falámos dos países endividados, mas que dizer dos particulares incapazes de liquidar as suas dívidas? Tomemos o exemplo da Espanha. A falta de regulamentação e o fácil acesso ao dinheiro pelos bancos espanhóis geraram uma enorme quantidade de empréstimos hipotecários, que galvanizaram a especulação imobiliária. Os próprios bancos assediavam os clientes, estimando o custo da sua habitação e emprestando-lhes ainda mais para a compra dum carro, móveis, electrodomésticos, etc. Quando a bolha imobiliária rebentou, o mutuário de boa-fé não pode reembolsar o empréstimo: já não tem um emprego. Levam-lhe a casa que vale muito menos do que quando a comprou, a família é despejada e endividada para o resto da vida. Em 2012, havia diariamente mais de duas centenas de despejos, o que explica a maior parte dos suicídios em Espanha... A questão que surge é: por que não recorrer a remédios que parecem óbvias e por quê repetir sempre o pior cenário? Porque o problema não é técnico, mas político. Ela é determinada por um equilíbrio de forças. Quem dirige as nossas sociedades? O capital ou os homens?

O maior erro que fizemos à economia foi retirar-lhe a sua dimensão originária de economia política. Fizeram-nos acreditar que tudo era técnico disfarçando a ideologia em ciência e incentivando-nos a ignorar as relações de poder dentro duma sociedade, colocaram-nos a todos ao serviço dos poderes dominantes, do que eu chamo de “império do capital”. A estratégia do endividamento intensivo que levou à crise da dívida latino-americana não se destinava a ajudar o nosso país a desenvolver-se. Ela obedeceu à urgência de colocar o dinheiro em excesso que inundou os mercados financeiros do “primeiro mundo”, os petrodólares que os países árabes produtores de petróleo tinham colocado em bancos nos países desenvolvidos. Este dinheiro veio do aumento dos preços do petróleo após a guerra de Outubro de 1973, preços que foram mantidos em níveis elevados pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Entre 1975 e 1980, os depósitos em bancos internacionais aumentaram de 82 mil milhões para 440 mil milhões (1.226 mil milhões de dólares a preços correntes).

Confrontado com a necessidade de colocar uma quantidade tão significativa de dinheiro, o Terceiro Mundo atraiu o interesse. Assim , a partir de 1975, começámos a ver desfilar através os banqueiros internacionais ansiosos por colocar todos os tipos de créditos, incluindo o financiamento de despesas correntes e a aquisição de armas pelas ditaduras militares que governaram muitos estados. Estes banqueiros zelosos, que nunca tinham visitado região, nem como os turistas, também trouxeram grandes subornos destinados a levar os funcionários a aceitar novos empréstimos, qualquer que fosse o pretexto. Ao mesmo tempo, as instituições financeiras internacionais e as agências de desenvolvimento continuaram a vender a ideia de que a solução era endividar-se.

Se a independência dos bancos centrais serve, de facto, para garantir a continuidade do sistema qualquer que seja o veredicto das urnas, ela foi imposta como uma necessidade “técnica” no início dos anos 1990, justificado por pretensos estudos empíricos que demonstram que tal dispositivo gera um melhor desempenho macroeconómico. De acordo com essas “pesquisas”, os bancos centrais independentes poderiam agir “tecnicamente”, longe de pressões políticas perniciosas. Com um argumento tão absurdo, seria igualmente necessário autonomizar o Ministério das Finanças, pois a política fiscal também deveria ser puramente “técnica”. Como sugerido por Ronald Coase, laureado com o prémio do Banco Real da Suécia para as Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel, os resultados desses estudos podem ser explicados: torturaram-se os dados até que eles dizerem o que queríamos que eles dissessem.

No período antes da crise, os bancos centrais autónomos dedicaram-se exclusivamente a manter a estabilidade monetária, ou seja , a controlar a inflação, apesar dos mesmos terem desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento de países como o Japão ou a Coreia do Sul. Até os anos de 1970, o objectivo fundamental da Reserva Federal dos EUA foi o de promover a criação de emprego e o crescimento económico; foi só com as pressões inflacionárias do início dos anos 1970 que o objectivo de promover a estabilidade dos preços foi adicionado ao conjunto. A prioridade dada à estabilidade de preços também significa, na prática, o abandono de políticas para manter o pleno emprego de recursos na economia. A tal ponto que, em vez de mitigar recessões e desemprego, a política fiscal, comprimindo constantemente os gastos, os agrava.

Os bancos centrais ditos "independentes" que se preocupam apenas para a estabilidade monetária são parte do problema, não a solução. Eles são um dos factores que impedem a Europa de sair mais rapidamente da crise. As capacidades europeias continuam intactas. Vocês dispõem de tudo: o talento humano, os recursos produtivos, a tecnologia. Acho que devemos tirar conclusões duras de tudo isto: trata-se dum problema de coordenação social, isto é, de aplicação do que se pode designar por política económica da procura. Ao invés, as relações de poder, nos vossos países e no plano internacional, são totalmente favoráveis ao capital, nomeadamente o financeiro, razão pela qual as políticas aplicadas são contrárias ao seria socialmente desejável.

Matraqueados pela suposta ciência económica e pelas burocracias internacionais, muitos cidadãos estão convencidos de que “não há alternativa”. Mas estão errados.»

Aqui ficou a sua conclusão, com a importante chamada de atenção para três pontos essenciais do texto:

  1.  A responsabilidade pelo sobre-endividamento tem, no mínimo, que ser compartilhada entre devedores (os Estados) e credores (os bancos);
  2. O elemento fundamental da verdadeira ciência económica (enquanto ciência social que irrefutavelmente é) são as pessoas e não as corporações;
  3.  Nas palavras do próprio Rafael Correa: «…muitos cidadãos estão convencidos de que “não há alternativa”. Mas estão errados.»;

que merecem ser referenciados, debatidos (nas suas implicações próximas e futuras) e divulgados, em nome da defesa do pensamento económico e da responsabilidade dos cidadãos actuais face aos vindouros.

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