A leitura da
notícia de que o chefe da missão do FMI em Portugal, Subir Lall, deixou o aviso
numa entrevista
ao FINANCIAL TIMES que o «Ajustamento da economia portuguesa vai demorar mais
dez a 15 anos», recordou-me um artigo que li há dias sobre
anteriores actuações daquele organismo.
Embora
publicado na última edição nacional do LE MONDE DIPLOMATIQUE (mas não
disponível em linha) aqui deixo uma tradução própria do referido artigo,
assinado por Rafael Correa. Nele, o actual presidente do Equador, economista de
formação (frequentou as Universidades Católicas de Guayaquil e de Lovaina e a University of Illinois) deixa a sua
perspectiva sobre um fenómeno que conhece, como diria Luís Vaz de Camões, fruto
de um saber de experiências feito.
Particularmente
interessante (e a razão pela qual o traduzi – o original pode
ser lido nesta página da edição francesa – e o reproduzo) é o facto do
texto apresentar uma perspectiva de experiência real e quase pessoal.
«A União Europeia endividada
reproduz os nossos erros
Rafael
Correa
Nós, os
latino-americanos somos especialistas em crises. Não porque sejamos mais
inteligentes do que os outros, mas porque as sofremos todas. E gerimo-las
terrivelmente mal, porque só tínhamos uma prioridade: a defesa dos interesses
do capital, ainda que mergulhássemos a região numa longa crise da dívida. Hoje
vemos com preocupação a Europa seguir o mesmo caminho.
Na década
de 1970, os países latino-americanos entraram numa situação de dívida externa
excessiva. A história oficial diz que isso resultou de políticas de governos
"irresponsáveis" e dos desequilíbrios acumulados por causa do modelo
de desenvolvimento adoptado pelo subcontinente, depois da guerra: a criação de
uma indústria capaz de produzir localmente produtos importados, ou
“industrialização por substituição de importações”. Essa enorme dívida foi de
facto promovida - e até imposta - pelas instituições financeiras
internacionais. A lógica defendida era que por meio de projectos de
financiamento com alta rentabilidade, que na época abundavam no Terceiro Mundo,
teríamos sucesso no desenvolvimento, enquanto o retorno sobre estes
investimentos permitisse saldar as dívidas. Isso durou até 13 de Agosto de 1982
quando o México se declarou incapaz de cumprir os prazos.
Em
consequência, toda a América Latina teve que sofrer a suspensão dos empréstimos
internacionais, a par com o forte aumento das taxas de juros sobre a sua
dívida. Os empréstimos que foram contratados a 4% ou 6%, mas com taxas
variáveis, chegaram de repente a 20%. Mark Twain disse: “Um banqueiro é alguém
que lhe empresta um guarda-chuva quando está sol e o exige-o de volta quando
começa a chover...” Assim começou a nossa crise da dívida. Durante os anos
1980, a América Latina fez para os seus credores uma transferência líquida de
recursos de 195 mil milhões (cerca de 554.000 milhões em valor corrente). Ao
mesmo tempo, a dívida externa da região aumentou de 223 mil milhões em 1980
para 443 mil milhões de dólares... em 1991! Não por causa de novos empréstimos,
mas por causa de refinanciamento e de acumulação de juros. Na verdade, o
subcontinente assistiu à conclusão da década de 1980 com os mesmos níveis de
rendimento per capita que tinha, em meados da década de 1970. Fala-se de uma
“década perdida” para o desenvolvimento. Na verdade o que se perdeu foi toda
uma geração.
Embora as
responsabilidades tivessem sido partilhadas é claro que os países dominantes,
as burocracias internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o
Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), bem como os
bancos privados internacionais, resumiram as dificuldades ao problema de
endividamento dos estados (overborrowing). Em contrapartida nunca assumiram as
suas próprias responsabilidades pela concessão exagerada de crédito
(overlending). Crises fiscais graves e dívida externa gerada pela transferência
líquida de recursos da América Latina para os seus credores levaram muitos
países da região a assinar “cartas de intenção” ditadas pelo FMI. Estes acordos
vinculativos permitiram a obtenção de empréstimos a partir desta organização
bem como a sua caução na renegociação de dívidas bilaterais com os países
credores reunidos no Clube de Paris. Os programas de ajustamento estrutural e
estabilização impuseram a receita do costume: austeridade fiscal, o aumento dos
preços de serviços públicos, privatizações, etc. Todas as medidas através das
quais não se tentava sair rapidamente da crise, ou impulsionar o crescimento e
o emprego, mas a garantir o pagamento de empréstimos dos bancos privados. Em
última análise, os países continuavam endividados, não junto destas
instituições, mas de instituições financeiras internacionais que protegiam os
interesses dos bancos.
No início
de 1980, um novo modelo de desenvolvimento começou a impor-se na América Latina
e no mundo: o neoliberalismo. Este novo consenso sobre a estratégia de
desenvolvimento tem sido apelidado de “Consenso de Washington”, cujos
principais mentores e impulsionadores são as instituições financeiras
multilaterais com sede em Washington. De acordo com a lógica em voga, a crise
na América Latina deveu-se à excessiva intervenção do Estado na economia, à falta
de um sistema adequado de preços livres e ao afastamento dos mercados
internacionais - sendo sabido que estas características resultavam do modelo
latino-americano de industrialização por substituição de importações.
Consequência duma campanha de propaganda ideológica sem precedentes, disfarçada
de pesquisa científica, bem como a pressão directa do FMI e do Banco Mundial, a
região passou de um extremo ao outro: da desconfiança do mercado à confiança
excessiva nas regras do livre comércio, da desregulamentação e da privatização.
A crise não era apenas económica, antes resultado duma falta de liderança e de
ideias. Estávamos com medo de pensar por nós mesmos e concordámos, de
forma tão passiva quanto absurda, com os
ditames estrangeiros.
A
descrição da crise que atravessou o Equador (ler “L’Equateur, 1998”) será,
provavelmente, familiar a muitos europeus. A União Europeia sofre dum
endividamento produzido e agravado pelo fundamentalismo neoliberal. Embora
respeitando a soberania e a independência de cada região do mundo, estamos
surpresos que a Europa, ao mesmo tempo tão esclarecida, repetia em todos os
aspectos, os erros de ontem da América Latina. Os bancos europeus emprestaram à
Grécia fingindo não ver que seu défice orçamental era quase três vezes maior do
que o reportado pelo Estado. Isso levanta novamente o problema dum
sobreendividamento onde se escamoteia a contrapartida: o excesso de crédito.
Como se o capital financeiro nunca tivesse qualquer responsabilidade.
De 2010 a
2012, o desemprego atingiu níveis alarmantes na Europa. Entre 2009 e 2012,
Portugal, Itália, Grécia, Irlanda e Espanha reduziram seu orçamento de despesa
de 6,4% em média, prejudicando gravemente os serviços de saúde e educação. Esta
política é justificada por uma escassez de recursos, mas grandes somas foram
disponibilizados para socorrer o sector financeiro. Em Portugal, na Grécia e na
Irlanda , os valores de resgate bancário excedem os gastos anuais em salários.
Enquanto a crise está atingindo directamente os povos da Europa, continuam a
impor-se as receitas fracassadas em todo o mundo.
Tomemos o
exemplo de Chipre. Como sempre, o problema começa com a desregulamentação do
sector financeiro. Em 2012, a sua má gestão torna-se insustentável. Bancos
cipriotas, em especial o Bank of Cyprus e Laiki Bank, tinham concedido à Grécia
empréstimos privados num valor superior ao produto interno bruto (PIB) do
Chipre. Em Abril de 2013, a “troika”, o FMI, o Banco Central Europeu (BCE) e a
Comissão Europeia, propõe um “resgate” de 10 mil milhões de euros condicionado
a um programa de ajustamento que inclui a redução do sector público, a abolição
do sistema de reformas para os novos funcionários, a privatização das empresas
públicas estratégicas, o ajustamento fiscal até 2018, a limitação dos gastos sociais
e da criação dum “fundo de resgate”, cujo objectivo é apoiar os bancos e
resolver os seus problemas, além do congelamento dos depósitos superior a
100.000 euros.
Não há
dúvida de que as reformas são necessárias, ou que devemos corrigir erros
graves, incluindo os originais: a União Europeia incluiu países com
diferenciais de produtividade muito importantes que os salários internos não
reflectem. No entanto, na maioria das vezes, as políticas não procuram
recuperar da crise com o menor custo para os cidadãos europeus, mas apenas
garantir o pagamento da dívida aos bancos privados.»
Dada a sua
extensão tomei a liberdade de dividir o artigo em duas partes; uma primeira na
qual o autor elabora um breve enquadramento histórico sobre as origens da crise
das dívidas e uma segunda (a publicar de seguida) onde coloca a ênfase nos
efeitos sobre as pessoas que a sofreram… e sofrem.
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