terça-feira, 30 de agosto de 2011

OS INIMPUTÁVEIS SEGUNDO CÉSAR DAS NEVES


Talvez porque na actual conjuntura os “incorruptíveis” estejam um pouco fora de moda, César das Neves trouxe-nos, na sua mais recente crónica no DN, «As forças inimputáveis», grupo que na sua opinião integra todos os que defendem a recusa do plano de estabilização, uma renegociação da dívida externa e o abandono do euro.

E embora ele seja o próprio a afirmar que a «...esquerda, ao contrário da direita, sempre procurou legitimidade intelectual e ética em modelos ideológicos» dificilmente negará que figuras da sua área ideológica e não-esquerdista, como o reputado Prémio Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, ou o não menos conhecido especulador George Soros, em várias ocasiões têm preconizado soluções que não passam pela imposição de travões ao crescimento económico – ao contrário das políticas de austeridade e de defesa dogmática do equilíbrio orçamental –, que têm subjacente a necessidade de mais tarde ou mais cedo ter que se proceder à reestruturação das dívidas e até, pasme-se, ao abandono do euro.

É certo que para qualquer discípulo de Milton Friedman, toda e qualquer ideia um pouco menos liberal e/ou mais neo-keynesiana, equivale e justifica o epíteto de “esquerdista”. Para quem acha que não existem almoços grátis (e isso é uma dura realidade que os cidadãos bem têm sentido nos seus bolsos, pois a cada aparente ligeiro alívio no seu rendimento disponível, rapidamente se segue novo aperto no torniquete das medidas monetaristas que conduzirão ao paraíso da liberdade de circulação dos capitais – as pessoas, essas ficarão perpetuamente presas das dívidas criadas para aumentar a remuneração daqueles) a própria denúncia destes “inimputáveis” incluiu um demasiado evidente odor a frete...e o odor agrava-se ainda mais – a ponto de se tornar insustentável - quando no afã de cumprir o objectivo o autor usa precisamente a mesma prática de não submeter as suas propostas a escrutínio que anteriormente atribuíra aos seus oponentes. 

Se não vejamos: quando afirma que a recusa dum plano de estabilização, a proposta de renegociação da dívida externa ou o abandono do euro são propostas que implicariam uma redução brutal da despesa com sacrifícios inimagináveis, sustentáveis apenas «...porque ninguém se dá ao trabalho de escrutinar as suas propostas, ouvindo apenas as queixas..» como se ele próprio avançasse alguma tentativa de quantificação salvo a de referir a perda de «...os 78 mil milhões de euros do acordo...» firmado com o FEEF, o BCE e o FMI.

Sobre os custos do acréscimo do endividamento (questão que oportunamente esmiucei no “post” «O GRANDE RESGATE») existem cálculos que César de Neves prefere ignorar, já quanto aos sacrifícios inimagináveis teremos que nos contentar com a sua convicção, pois não apresenta uma mínima referência a qualquer valor que possa ser submetido ao tal escrutínio a que o professor tanto gosta de sujeitar as propostas que lhe desagradam.

Foi esta dicotomia – tão bem expressa no aforismo «Faz como S. Tomás diz, não como ele faz» –, recorrente em César das Neves, que me fez regressar à crónica que o DN publicou na semana passada e na qual Adriano Moreira (mais uma personalidade que dificilmente poderá ser apodada de esquerdista) se refere a uma certa forma de «...confundir o sistema com a realidade que dele se afastou...» e que designa como «O capitalismo de ficção»; é certo que se Adriano Moreira usa o conceito criado por Vicente Verdú[1], em 2003, e que envolve uma visão transdisciplinar entre a economia a sociologia, é fundamentalmente para criticar o modelo de capitalismo financeiro «...que tendo violado a ética do mercado, e escapado aos poderes reguladores, pôs em causa o valor da confiança a que é urgente regressar», enquanto César das Neves, pelo contrário, quando contrapõe o afã “esquerdista” do controlo público ao seu desejo de ver reduzido o papel regulador do Estado (como se aqueles que partilham a sua visão economicista da vida fossem os únicos defensores da necessidade de reequilíbrio das contas públicas e a verdadeira divergência não se situasse no facto de monetaristas e neoliberais defenderem a redução do papel social do Estado, enquanto as restantes correntes defendem outros binómios de equilíbrio que incluem uma repartição mais equitativa da carga fiscal) visa apenas perpetuar o modelo de financiarização da economia real e de perpetuação do desequilibrado modelo de redistribuição da riqueza que impede a recuperação dos valores de confiança entre os agentes económicos.


Estranho mesmo, é que se César das Neves tivesse razão na análise que apresenta deveriam ser os “esquerdistas” sequiosos da destruição do seu querido “capitalismo” os seus principais apoiantes, pois o aprofundamento da crise global deveria servir muito melhor o objectivo de destruição dos interesses monopolistas que a sugestão de vias alternativas para a solução da actual crise.


[1] Vicente Verdú é um escritor, jornalista e economista espanhol, autor de obras como: «El estilo del mundo: la vida en el capitalismo de ficción» (2003) e « El capitalismo funeral» (2009) e colaborador no blog literário «El Boomeran(g)».

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