quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O FUTURO LÍBIO


Apesar de algumas notícias contraditórias dos últimos dias sobre o desenrolar dos acontecimentos na Líbia, parece quase seguro o fim do regime do velho coronel Kadhafi, homem que atingiu o poder no auge dos movimentos nacionalistas pan-árabes da década de 60 do século passado, sobreviveu a incontáveis vicissitudes e que conheceu um novo fôlego e um rejuvenescimento durante a passagem de George W Bush pela presidência americana e pelo que isso significou no complicado xadrez político do mundo muçulmano, então especialmente agitado pela invasão norte-americana do Iraque.


Em plena fase de desagregação, o regime do coronel líbio era ainda há muito pouco tempo objecto de grandes manifestações de apreço e apoio por líderes europeus, com especial destaque para Nicolas Sarkozy, e não terão sido algumas tímidas movimentações populares inspiradas na vizinha Tunísia que terão alterado significativamente aquela realidade e ainda menos o cenário de novas confrontações que poderão suceder-lhe, antes o habitual apetite pelo acesso às reservas de hidrocarbonetos e a importância do controlo dos importantes aquíferos subterrâneos.

O excessivo envolvimento do Ocidente, em especial o lançamento de acções militares aéreas pela NATO, no processo de deposição de Kadhafi poderá revelar-se dentro em breve como o pior dos futuros para o povo líbio. Povo que, fruto das exportações petrolíferas e do seu reduzido número (cerca de 6 milhões) e a acreditar na informação estatística, apresenta um elevado rendimento per capita; sucede porém que as inevitáveis desigualdades na distribuição do rendimento determinaram uma realidade bem diferente, havendo mesmo referências a carências alimentares (facto a que não deverá também ser estranho o isolamento internacional e as dificuldades na importação de bens alimentares para uma região com fracas capacidades agrícolas). O próprio desenrolar da ofensiva dos opositores de Kadhafi, maioritariamente originários da região da Cirenaica (território a leste que faz fronteira com o Egipto, onde a tradicional actividade da pastorícia tem sido substituída pela da exploração petrolífera e cujo principal centro é Benghazi) reflecte a tradicional rivalidade com a região Tripolitana (região mediterrânica, a norte, que faz fronteira com a Tunísia, tradicionalmente agrícola onde se localizam Tripoli, a capital, e Syrte, região natural de Kadhafi) e a ainda forte tradição tribal e clânica que poderá a qualquer momento evoluir para a desagregação da actual aliança de opositores para outras múltiplas combinações que a fragmentada estrutura social líbia facilita.

Quando a um cenário desta natureza se junta um regime altamente centralizado e a quase inexistência dum estado formal (no sentido ocidental, mas também no sentido prático) fácil se torna concluir que o ruir da elite governante não dará naturalmente lugar a uma situação claramente melhor, tanto mais que a heterogeneidade dos opositores não augura um mínimo de estabilidade. Se o problema no plano interno passará principalmente pelo posicionamento da liderança militar e o assassinato de Abdel Fatah Younis[1], major general e ex-ministro do interior que desertara para assumir a liderança militar dos rebeldes, pode ser um claro sinal de lutas internas pelo poder, já no plano externo avolumam-se as análises e os “apelos” á presença militar estrangeira[2], á semelhança da intervenção da NATO na Bósnia e no Kosovo, tudo elementos que auguram muito pouca tranquilidade para o período pós-Kadhafi.


[1] Abdel Fatah Younis era apontado como o número 2 do regime de Kadhafi mas optou por desertar e assumir o comando das forças rebeldes que na altura sitiavam a estratégica cidade de Brega. As primeiras notícias atribuíam a sua morte a ordens do próprio Muammar Kadhafi para depois se assegurar que sobre ele pesavam suspeitas de jogo duplo, passando o seu assassinato a assumir contornos de vingança ou ajuste de contas entre facções rebeldes.
[2] Entre outros leiam-se os artigos de opinião «Dúvidas líbias» e «A Líbia vai precisar de presença militar no terreno» assinados, respectivamente, por Bernardo Pires de Lima e Richard Haass e atente-se no estranho facto de repentinamente (na última semana) e após um longo arrastar de escaramuças de baixa intensidade a ofensiva rebelde sobre Tripoli ter registado um avanço rapidíssimo (para o padrão dos progressos até então registados), factos que permitem especular sobre uma muito provável presença militar estrangeira e que nem mesmo a notícia difundida pelo FIGARO sobre a criação e o treino especial duma brigada de exilados líbios, a Katiba Tripoli (brigada de Tripoli) poderá evitar.

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