segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

ISTO É UMA ESPÉCIE DE CONTO DE NATAL

Haverá época mais apropriada à efabulação que a do Natal?

Talvez não… e talvez tenha sido isso que pensaram os responsáveis do jornal moscovita KOMMERSANT quando há uns dias divulgaram com especial relevo o conteúdo de um relatório produzido pelo
CSIS (Centro de Estudo Estratégicos Internacionais)[1] sobre «Os cenários alternativos do desenvolvimento da Rússia», da autoria de Andrew C. Kuchins[2], notícia de que o COURRIER INTERNATIONAL se fez eco.

Fábula ou arrojado exercício de previsão, o certo é que entre os cenários previstos figura realmente a hipótese de ocorrer na madrugada do dia 7 de Janeiro (data em que se celebra o Natal ortodoxo) o assassinato de Vladimir Putin. O realismo do cenário vai ao ponto de assegurar que os autores do crime nunca serão identificados (no ar paira a possibilidade de uma coligação de esforços e interesses entre a guerrilha chechena e o oligarca[3] exilado em Inglaterra Boris Berezovsky[4]) e que na sua sequência suceder-se-á uma grande agitação popular e um período de repressão sangrenta.

Segundo Kuchins esta agitação e a derrocada da Bolsa impedirão o planeado processo de transmissão de poderes a Serguei Narychkine (o texto terá sido escrito antes das notícias que confirmaram Dmitri Medvedev, actual primeiro-ministro como o candidato presidencial do partido Rússia Unida, liderado por Putin e recente vencedor das eleições legislativas). A agitação encontrará alguma acalmia com a escolha do actual patrão dos caminhos-de-ferro, Vladimir Iakounine, para ocupar a presidência e a quem se deverá o fim das greves no sector petrolífero (mesmo com o recurso ao exército) e a condenação à morte de Valentina Matvienko e de Iouri Loujkov, presidente das câmaras de São Petersburgo e de Moscovo, respectivamente, mas só terminará efectivamente em 2016 quando o liberal Boris Nemtsov conquistar o Kremlin com a ajuda de Mikhail Khodorkovski[5], o antigo patrão da Yukos entretanto libertado da prisão.

Esta previsão contraria frontalmente a imagem que a imprensa ocidental tanto se tem esforçado por transmitir nos últimos tempos, a de um Putin no perfeito controlo de todas as peças no complicado tabuleiro que é o xadrez da política em qualquer canto do Mundo e ainda mais quando o país em questão é um dos grandes exportadores mundiais de energia e aspira a um lugar de destaque na cena internacional.

É certo que os processos governativos e eleitorais na Rússia moderna não primam pelos padrões de maior transparência e lisura, mas também quem se pode espantar quando isso mesmo ocorre nos que se auto intitulam como as maiores democracias?

Aliás, o cenário criado por Kuchins tem tanto de mirabolante quanto de exequível e nem sequer constitui o que se poderá chamar de original. Na essência pode até revelar-se substancialmente perigoso. Como?

Admitindo que este possa representar uma manifestação de um subconsciente dos que no Ocidente sempre reconheceram o perigo da existência de uma liderança forte na Rússia (para o pior e o melhor para muito americanos o “perigo” continua a vir da Rússia) e que o que mais desejam é a fragmentação desse poder e a redução da sua influência em regiões tão estrategicamente importantes como as produtoras de petróleo, nada melhor que algo que fizesse desaparecer aquele que melhor tem prefigurado o renascimento do “urso russo”. E se no Kremlin houver quem acolha a sugestão?

Seria esta a primeira vez que um líder mais ou menos autocrático simularia um atentado fracassado contra a sua própria vida? Quem já esqueceu o aproveitamento que Hitler fez do incêndio do Reichstag em 1933, quando uma pronta acusação aos comunistas determinou o início de um processo de prisões ou “atentado” contra Salazar, ensaiado em 1937 e fundamentalmente serviu para intensificar as perseguições e prisões dos seus opositores políticos?

Imbuído do espírito de perfeita isenção (e porque não dizê-lo, também muito enquadrável na quadra festiva) e enquanto opinião contra esta hipótese de “aproveitamento” da ideia, deixo a perspectiva de um especialista russo, Igor Bunin para o qual o cenário elaborado por Kuchins não tem aplicabilidade uma vez que os conservadores de direita do Kremlin estão ofuscados pelo seu enriquecimento pessoal e não parecem tentados por um extremismo político mais característico da América Latina.

A confirmar-se este ponto de vista, ou a hipótese de um atentado simulado, estará garantida a perpetuação de Putin e do “presente” (a eleição do seu candidato presidencial, Medvedev) que este nos reserva para 2008, conforme o caricaturista Tiounine, presença habitual nas páginas do KOMMERSANT, os retratou.

______________________

[1] O CSIS é um “think tank” americano orientado para o progresso da segurança global e da prosperidade numa época de transformações políticas mediante a disponibilização de análises estratégicas e de soluções práticas para os governantes (in http://www.csis.org/about/). Na prática trata-se de um parceiro estratégico das administrações norte-americanas (dado o seu assumido carácter bipartidário, integra republicanos e democratas) que elabora análises prospectivas sobre questões internacionais.
[2] Andrew Kuchins é o director do departamento do CSIS do programa Rússia e Eurásia, ex-membro do Carnegie Endowment for International Peace, organismo onde além de director de idêntico departamento (Rússia e Eurásia) foi ainda director do Carnegie Moscow Center na Rússia. Exerceu funções nas Universidades de Stanford e Georgetown e é mais um produto da Johns Hopkins University.
[3] Oligarquia (do grego oligoi, poucos, e arche, governo) significa, literalmente, governo de poucos. No entanto, como aristocracia significa, também, governo de poucos - porém, os melhores -, tem-se, por oligarquia, o governo de poucos em benefício próprio, com amparo na riqueza pecuniária.
As oligarquias são grupos sociais formados por aqueles que detém o domínio da cultura, da política e da economia de um país, e que exercem esse domínio no atendimento de seus próprios interesses e em detrimento das necessidades das massas populares. (excerto de
Wikipedia)
[4]Boris Berezovsky é um empresário (doutorado em matemática) e político de origem judaica (tem nacionalidade russa e israelita) que beneficiou da liberalização pós-comunista, tornando-se imensamente rico e influente (daí a designação corrente de “oligarca”), sobretudo quando passou a integrar o círculo de poder em torno de Boris Yeltsin; foi um dos apoiantes iniciais de Putin, mas depois entraram em litígio, o que o levou a fugir da Rússia (o governo acusa-o de corrupção e fraude fiscal) e a procurar exílio na Inglaterra que lhe concedeu asilo político. Entre as suas actuais actividades conta-se uma parceria na Ignite!Learning (empresa de software educacional de que é sócio Neil Bush, o irmão mais novo de George W Bush); no capítulo judicial encontra-se envolvido num processo contra dois políticos ucranianos que acusa do desvio de 23 mil milhões de dólares que doara para a campanha da Revolução Laranja (sucessão de manifestações e desobediência civil, na sequência de eleições consideradas fraudulentas, que levaram ao poder o político pró-ocidental Viktor Yushchenko) enquanto é procurado pela justiça brasileira por causa do seu presumível envolvimento num caso de lavagem de dinheiro que inclui a empresa de gestão desportiva MSI (a MSI – Media Sports Investment é uma empresa formada por um grupo de investidores, com sede declarada na Inglaterra e presumivelmente propriedade de Berezovsky) e o clube de futebol Corinthians, de São Paulo.
[5] Mikhail Borissovitch Khodorkovski é um empresário e magnata russo, ex-proprietário da petrolífera YUKOS; encontra-se preso desde 2003 acusado de corrupção, fraude fiscal e fuga de divisas. Há semelhança de muitos outros oligarcas, beneficiou com as reformas pró-capitalistas e neoliberais de Gorbatchov e Ieltsin nos anos 1990, tornando-se um dos mais importantes membros da nova oligarquia de empresários e chegou a ser apontado como o principal rival do poder estabelecido no Kremlin e várias vezes especulou-se que o empresário seria candidato à presidência contra Vladimir Putin. (in Wikipedia, adaptado)

Sem comentários: