Ainda que poucas vezes abordado
ou referido por analistas e comentadores, desde a eclosão, em 2008, da crise
sistémica global que o mundo procura um substituto para a sua dependência do
dólar americano. A intoxicação foi tão forte que demorou quase uma década a
elaborar um esboço de solução que, estranhamente, vem de uma instituição que se
poderia pensar obsoleta – o FMI – e do interesse da China em juntar a sua moeda
(o yuan) ao cabaz que origina a cotação da moeda escritural daquele organismo:
os direitos especiais de saque (DES).
E a que se deve essa recuperação?
Ao paciente trabalho duma China que após longos atrasos no destino do sistema
monetário internacional viu uns EUA incapazes de evitar o inevitável e, seja
por um sinal flagrante da sua perda de poder ou pelo reconhecimento da posição
chinesa enquanto principal credor dos EUA, aceitarem a participação chinesa abdicando
do direito de veto que têm no FMI.
Verdade se diga que o reconhecimento
desta velha ferramenta existente (a que mais se assemelha a uma moeda mundial,
na linha da solução defendida em Bretton Woods por John Maynard Keynes) no
papel de solução à esclerose do mundo do dólar tem o potencial para reconstruir
o sistema monetário internacional e até mesmo de ter muito maiores implicações
na reconfiguração do mundo multipolar.
Desde o colapso do sistema de
Bretton Woods, quando em 1971 os EUA declaram a inconvertibilidade do dólar em
ouro (o pilar básico do acordo que permitiu ao dólar americano alcandorar-se ao
papel de equivalente geral mundial e deu o empurrão decisivo à ascensão dos EUA
ao lugar de maior economia mundial), vieram perdendo importância e capacidade
para efectivamente estabilizarem o sistema monetário internacional; a ascensão
dos BRICS revelou ainda mais as limitações duma moeda escritural formada a
partir dum cabaz de moedas que contém apenas o dólar, o euro, a libra e o iene,
e que dificilmente pode reflectir a geometria da economia global do século XXI.
Com a inclusão do yuan a partir de Outubro de 2016, os DES recuperaram alguma
da importância perdida.
Claro que o dólar continua ainda
sobre-avaliado e a sua proporção pouco mudou e se o yuan incorporou o cabaz,
fê-lo em detrimento das três outras moedas, especialmente do euro, o que não
terá deixado de agradar aos americanos que sempre viram na moeda-europeia a sua
grande rival. Esta evidente fragilidade europeia (agravada também pela ainda
maior descida da libra) é sinal claro da tibieza da liderança da UE mas pode
traduzir-se num processo de transição mais pacífico para um mundo multipolar,
agora que a China não deixará de paulatinamente fazer valer o seu estatuto de
segunda economia mundial.
Confirmando este novo
protagonismo para os DES o governo chinês já patrocinou uma emissão de dívida
denominada em DES (ainda que este, por ser extensível a investidores privados,
seja apenas um veículo financeiro que replica os DES do FMI) e embora os 2 mil
milhões de DES previstos para aquela emissão de obrigações possa parecer
pequena, este montante deve ser comparado com os meros 204 mil milhões de DES
emitidos desde a criação do FMI, o que justifica a ideia duma clara reanimação
desta ferramenta monetária.
Outro sinal da evolução no
sentido dum mundo multipolar e dos extremos cuidados de que a China se tem
rodeado é a tentativa de integrar as ferramentas de governança
"internacional" existentes, adaptando-as ao mundo nascente e
tornando-as realmente mundiais. É exemplo disto o facto do Banco Mundial (outra
das organizações criadas a partir de Bretton Woods) ter legitimado aquela que é
uma emissão obrigacionista claramente percebida como um ataque contra a
supremacia do dólar, que posiciona os DES como embrião duma moeda mundial,
agora que o contexto deflacionário ocidental retira muita da sustentação às
habituais críticas de risco de inflação (o eterno pavor alemão que muito tem
contribuído para anular o papel e o poder do euro) e que abre perspectivas a
novas políticas apontadas ao investimento em infra-estruturas e inovação
através de uma retoma da despesa pública e na moderação das políticas de
flexibilização da política monetária, recuperando o papel do dinheiro na
economia real e não apenas no mundo financeiro especulativo.
O redesenho da governança
mundial, traduzido na revitalização dos grandes fóruns internacionais (FMI,
Banco Mundial e até a ONU) serve a agenda política dos BRICS liderados pela
China e pode até ajudar a Europa a libertar-se da influência dos EUA, sem
confrontos directos nem claros sinais de agitação, enquanto o
Banco de Investimento Asiático para as Infra-estruturas (AIIB) continua a ver
crescer o número dos seus membros.
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