Enquanto a Europa continua absorvida pela resolução interna duma crise (chamada da dívida pública) originada no seu exterior, os EUA desdobram-se entre o Afeganistão e o Irão (para não falar na persistência duma economia interna anémica), a China mantém a sua estratégia “low profile” enquanto aguarda pela degradação da situação norte-americana e a Rússia se debate no esforço de regresso a um papel internacional de relevo, continua a vingar no Ocidente a tese dos malefícios que não poderão deixar de advir se o Irão conseguir dotar-se de armamento nuclear.
Casos há em que a linguagem e o argumentário contra semelhante hipótese raia o discurso ouvido durante a Guerra Fria, quando o “inimigo” eram os comunistas…
Diaboliza-se o Irão como outrora se diabolizou a URSS mas raramente se analisa a situação com a frieza e a objectividade que a mesma requer. Tratam-se os países candidatos à aquisição de capacidades bélicas nucleares consoante o seu posicionamento geoestratégico e o seu maior ou menor alinhamento com os chamados interesses ocidentais e pretende-se que o risco dum país islâmico nuclearizado é maior que o dum país judaico ou confucionista (para manter a comparação no patamar religioso) enquanto se esquece que o Paquistão é um país islâmico dotado de armamento nuclear; exacerba-se o risco duma ditadura dispor de armamento nuclear, como se o facto da Coreia do Norte dele dispor tivesse inviabilizado a sobrevivência dos regimes políticos dos países vizinhos.
Deliberadamente é esquecido o facto do Irão ser um dos subscritores do Tratado de Não Proliferação Nuclear, quando existem países não subscritores, como Israel, que possuem capacidades nucleares que (cumulo da hipocrisia) não reconhecem oficialmente.
A realidade é que o conceito de não-proliferação herdado do pós-Guerra está em crise como o ilustra o crescente número de potências nucleares não signatárias do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), o facto dos EUA continuar a desenvolver novos tipos de armamento nuclear a actual, a ausência de sancionamento internacional ao Paquistão enquanto principal responsável pela proliferação daquela tecnologia, concluindo com os termos do mais recente nuclear celebrado entre os EUA e a Índia que esquece completamente os termos do TNP.
Nestes termos a crise Irão/EUA, na qual Israel representa um papel não displicente nem inocente, não deve ser tratada como um caso especial, antes incluída numa perspectiva de longo prazo adequada às novas realidades do século XXI.
Quando a sociedade internacional aceita que o regime de Pyongyang organize um “programa nuclear por comida”[1] e reconhece implicitamente o argumento israelita da necessidade de protecção nuclear contra os vizinhos árabes, que dizer da situação dum país como o Irão, rodeado de estados com capacidades nucleares (Rússia, Israel, Paquistão e, possivelmente, a Arábia Saudita) a quem se pretende recusar esse mesmo argumento?
Não será esta uma oportunidade de ouro para, reconhecendo que o acesso a capacidades bélicas nucleares sempre tem sido acompanhada duma maior moderação e ponderação negocial, quebrar o impasse e abrir novas perspectivas no sentido duma verdadeira política de proliferação nuclear controlada baseada:
- numa visão integrada do desenvolvimento nuclear civil e militar, prevenindo o desenvolvimento de armamento sem descurar as necessidades de dissuasão regional e global;
- na definição de regras não arbitrárias de controlo multilateral, que incluam a necessidade de desenvolvimentos políticos internos democráticos (indispensáveis para alcançar um efectivo controlo político dos militares), e de acordos de segurança regional, acompanhados de acordos de cooperação económica e de comércio regional;
sem esquecer que, contrariamente ao que é voz corrente no Ocidente, a paz no Médio Oriente poderá ficar bem mais acessível do que se tem revelado até agora.
[1] Referência adaptada do programa iraquiano “petróleo por comida” organizado sob os hospícios da ONU.
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