Não é necessária uma observação muito detalhada do desenvolvimento da crise da dívida pública na Zona Euro, para se constatar que a par com uma acelerada deterioração das condições de vida da maioria das populações mais directamente atingidas se nota uma evidente regressão no funcionamento das estruturas democráticas.
Quando a propagação da crise às diferentes economias vai determinando a substituição extemporânea dos governos – isso mesmo foi observado na Grécia, Irlanda e Portugal, os três primeiros estados atingidos, já se verificou em Espanha e está a acontecer na Itália – nem por isso se vislumbra que os novos decisores reunam melhores condições ou qualidades para enfrentarem o problema; ao invés, continuamos é a assistir ao soçobrar do projecto europeu enquanto os seus autoproclamados timoneiros (Merkel e Sarkozy) repetem até à exaustão os mesmos discursos vazios de conteúdo prático, mas repletos das mesmas ideias bolorentas, enquanto se arrogam direitos que nada nem ninguém lhes atribuiu.
Esta evidente deriva imperial torna-se mais óbvia a cada dia que passa perante o silêncio complacente e cobarde dos seus congéneres; senão vejam-se as reacções que os dois tiveram ao anúncio dum referendo a realizar na Grécia a propósito do segundo resgate proposto para aquele estado-membro e constate-se quão brandas (para não dizer obsequiosas) foram as reacções dos restantes dirigentes.
Mesmo sendo um facto que acto eleitoral após acto eleitoral se repete a situação de crescente afastamento e divórcio entre eleitores e eleitos, com estes a actuarem à revelia dos programas e das declarações que apresentaram aos eleitores e a deixarem evidenciar um crescente desrespeito por aqueles processos, a crise que a UE atravessa tem tido a inegável virtude de mobilizar a atenção dos eleitores e de descobrir até onde os eleitos se julgam superiores e imunes à crítica e ao escrutínio públicos.
Apenas uma arreigada sensação de impunidade é que pode explicar a imposição de iniciativas como o Tratado de Lisboa que, contra a manifesta opinião dos cidadãos europeus que foram chamados a pronunciar-se em referendo, foi imposta pela elite burocrática de Bruxelas e das diversas capitais europeias. Essa mesma sensação de impunidade é que estará na base da teimosia que tem norteado as decisões do “directório” franco-germânico sobre a crise e a salvaguarda do sistema financeiro grandemente responsável pela sua difusão.
Quando se começam a multiplicar os avisos dos mais variados quadrantes e nacionalidades sobre o risco da ausência dum verdadeiro processo democrático de tomada de decisões, quando as vozes que clamam pela recuperação dos principais valores políticos e éticos que nortearam a formação da UE vão despontando aqui e ali, quando os sinais de esgotamento do modelo de desenvolvimento neoliberal são por demais evidentes e claros os sinais de rejeição popular às políticas restritivas que, seguindo aquele modelo, os governos europeus estão adoptar, poderemos estar na iminência duma de duas alternativas (a imposição daquele modelo ou a sua rejeição liminar), na certeza porém que o desenlace poderá não ser tão pacífico quanto isso.
Abundando os sinais – como sucede na actualidade nacional que está em vésperas de assistir à viabilização por mais de 80% dos parlamentares (PSD e CDS que votarão favoravelmente e PS que já anunciou a abstenção, representam 89,5% dos deputados) dum orçamento que, segundo uma sondagem publicada pelo EXPRESSO, mais de 80% dos portugueses criticam – do evidente divórcio entre o interesse geral e o dos políticos que dizem representá-lo, o desrespeito do voto constitui apenas um passo no caminho para um processo de imposição da vontade duma minoria, de que a crescente actividade de grupos radicais nacionalistas e xenófobos (a exemplo do caso recentemente ocorrido na Noruega) é mais um sinal; tudo isto numa Europa que há menos de um século, no rescaldo da Grande Depressão, foi terreno fértil para a propagação de ideais nacionalistas e fascistas.
Se, como defendem muitos dos habituais comentadores as épocas de crise constituem tempos de oportunidades, então este é o momento de se saber o que verdadeiramente pensam as populações da fobia austeritária que grassa pela Europa e de, perante o manifesto insucesso de que se revestiram os últimos actos eleitorais, dos quais não resultaram novas políticas mas apenas uma mera mudança de actores, optar pela mobilização dos cidadãos para directamente fazerem ouvir a sua voz.
Sem comentários:
Enviar um comentário