Ainda que sob
este epíteto se pudessem incluir acontecimentos tão diversos quanto as já longas
polémicas que envolvem Miguel Relvas (o aproveitamento em benefício próprio de
regras difusas e o uso de “prerrogativas” associadas ao estatuto de figura política)
ou a recente notícia de que em Portugal «Três
milhões vivem com menos de 500 euros/mês», pretendo hoje ajudar a não
deixar cair no esquecimento as notícias que desde finais do mês passado vieram
dando conta que «Combatentes islamistas estão a destruir os mausoléus
de Tombuctu», tanto mais que ainda esta semana pudemos ler que «Islamitas
continuam a destruir Tombuctu».
Para se ter
uma pequena ideia do que significam as notícias,recorde-se que Tombuctu, cidade
do Mali classificada em 1988 como Património Mundial pela UNESCO em
reconhecimento da sua importância histórica, é conhecida como a cidade dos 333
santos, reputada por um conjunto de mausoléus em terracota (construções únicas
no Mundo) que albergavam os restos mortais de vários santos sufis[1]
e sede da centenária universidade de Sankore e do não menos famoso centro Ahmed
Baba que alberga uma colecção de 20.000 manuscritos árabes antigos.
Não bastando o
reconhecido risco de desaparecimento sob as areias do Sahara – facto que levou
a UNESCO a incluí-la na sua Lista do
Património Mundial em Perigo – eis que é agora alvo duma ameaça ainda maior.
Local conhecido pela sua abertura cultural – nos séculos XV e XVI foi um importante
centro de tolerância religiosa e racial, habitado por muçulmanos, cristãos e
judeus –, sempre soube conciliar as culturas locais – songhai, tuaregue e árabe
– e conservar as várias tradições, até que com o recrudescimento da revolta
tuaregue no norte do país (facilitada pela massiva distribuição de armas
durante a insurreição líbia que ditou o fim de Kadhafi) e a chegada dos modernos
ventos do radicalismo islâmico, personificados nos guerrilheiros islamistas
do Ansar al-Dine[2]
(movimento que se afirma ligado à Al-Qaeda), ameaça repetir a barbárie que foi
a destruição pelos “taliban” afegãos
doutro monumento classificado como Património Mundial – os Budas de Bamiyan[3].
Quando
estamos em vias de assistir à concretização de mais um atentado à Civilização, inserido
naquela que há séculos é a reacção habitual dos que apenas entendem o dogmatismo
da “sua verdade”, perpetrado por fanáticos religiosos do mesmo calibre dos que
destruíram até à raíz as culturas pró-colombianas na América Latina ou dos que impuseram
as suas convicções religiosas nos territórios colonizados, resta-me lembrar
outro “atentado” cultural e profundamente gratuito – o que teve lugar em Março
de 2007 em Bagdad, não numa qualquer rua, mas na simbólica Al-Mutanabi
(assim designada em homenagem ao famoso poeta da época abássida), dedicada ao
comércio de livros e habitual local de reunião dos intelectuais iraquianos –
repetindo as palavras dum livreiro iraquiano e que serviram de título ao “post” que então lhe dediquei: «AGORA
ASSASSINAM OS LIVROS...».
[1] Os
sufis ou sufitas, defendem uma corrente mística e contemplativa do Islão e os
seus praticantes procuram desenvolver uma relação íntima, directa e contínua com
Deus, através da prática de cânticos, música e dança, o que é considerado
ilegal pela sharia de vários países muçulmanos. A designação sufismo é
utilizado para descrever um vasto grupo de correntes e práticas, que podem
estar associadas a qualquer das duas principais correntes islâmicas (sunita ou xiita),
ainda que para os mais radicais de qualquer delas seja considerado como um movimento
herético, razão pela qual tem sido regularmente perseguido ao longo da
história.
[2] Também
designado por Ansar Dine (Defensores da Fé), é um grupo islâmico que pretende a
imposição da sharia (lei islâmica) em todo o território do Mali; no início da chamada
Rebelião Tuaregue actuou em conjunto com o MNLA (Movimento Nacional de
Libertação do Azawad) na oposição ao regime de Bamako, mas os dois movimentos
já divergiram ao ponto de se terem registado confrontos entre as duas forças.
[3] Os Budas de
Bamiyan eram duas estátuas de Buda escavadas na rocha pelos monges budistas que
viveram no vale homónimo até à chegada do islão no século XIX. Integrado na
mítica Rota da Seda e localizado a menos de 250 km da capital afegã, Cabul, o
local sobreviveu intacto até que em 2001 foi destruído pelo movimento “taliban”, sob a alegação se tratarem de
ícones.
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