sábado, 17 de dezembro de 2011

A DISCUSSÃO SOBRE A DÍVIDA PÚBLICA QUE NUNCA FAREMOS


A notícia lida na VISÃO sobre uma iniciativa para a realização duma "auditoria cidadã à dívida" portuguesa leva-me a retomar o tema da dívida pública e da sua discussão.

Quando é crescente na imprensa a referência à necessidade de revisão das condições da dívida pública, ou seja, quando são cada vez mais a vozes que ecoam em torno da questão da renegociação da dívida, nem por isso as notícias são um sinal de que é cada vez mais evidente a necessidade de reconhecer as origens do problema e de discutir as possíveis soluções.


No que à origem respeita, importa recordar que a explosão do crescimento das dívidas públicas ocorre num período fora do contexto de guerra, situação que historicamente explicou os fenómenos anteriores. Como, em Março deste ano, escrevi no “post” «A DÍVIDA PÚBLICA É INSUSTENTÁVEL E IMPOSSÍVEL DE LIQUIDAR» a situação actual resulta duma conjugação de factores:
  • generalização de políticas fiscais degressivas sobre os lucros e os ganhos de capital;
  • alienação da componente mais lucrativa do sector público;
  • recurso generalizado à emissão de dívida pública e em especial a sua colocação nos mercados externos;
se a estes factores adicionarmos sucessões de governos dirigidos por políticos mais preocupados com:
  • a satisfação dos anseios da sua potencial clientela eleitoral;
  • a “realização de obra vistosa”;
do que com uma gestão equilibrada da coisa pública, teremos reunidas quase todas as condições para entendermos as razões do estado a que chegámos. Faltando apenas a pequena centelha que provocaria a ignição final, que se concretizou através de mais uma das várias crises financeiras que assistimos no último quartel de século quando em resultado do rebentamento da bolha especulativa do “subprime” o sector financeiro ameaçou ruína e os Estados foram chamados a intervir em seu socorro.

Desprovidos dos meios financeiros mínimos e até da capacidade de criarem a sua própria moeda (poder reservado aos bancos centrais e ao sistema financeiro que os controla), envolvidos no turbilhão dos processos de alavancagem financeira que se recusam a regulamentar, os poderes públicos aumentaram o seu endividamento passando rapidamente a constituir o “problema” seguinte e a serem agora objecto de ameaça de falência. 

Perante um quadro de estagnação do PIB (o agregado macroeconómico que mede a produção nacional) e de crescimento desenfreado da dívida, os Estados (em especial os da UE) apressaram-se a lançar políticas de redução da despesa e de aumento dos impostos (as vulgarmente designadas políticas de austeridade), sob a promessa dos ideólogos neoliberais de que a redução do papel do Estado (nomeadamente o da educação, saúde e assistência social) constituía panaceia absoluta para o problema. Na prática, um após outro têm seguido aqueles ditames (com ou sem a intervenção do FMI) sem que até ao momento se tenha constatado mais que o agravamento da sua situação financeira e a degradação das condições de vida da esmagadora maioria da sua população.

Totalmente avessos a um real debate da situação e das alternativas possíveis, sob conselho e orientação dos mais dogmáticos, os poderes estabelecidos recusam-se a aceitar que a solução prescrita mais não tem feito que agravar o problema e sem cuidar de explicar aos contribuintes que os credores são o mesmo sistema financeiro que a pretexto da relevância da sua actuação na economia se arrogam o privilégio de não poderem em caso algum sofrer as naturais consequências da má gestão praticada (e inúmeros são os casos em que pior que uma gestão arriscada houve lugar a verdadeira gestão danosa e fraudulenta), recusam qualquer debate, em nome da exclusiva defesa dos interesses dos credores, e impõem a aplicação de sucessivos pacotes de austeridade que no limite não conseguirão satisfazer esses mesmos credores.

Porque além do excesso de endividamento originado pelas políticas de resgate ao sistema financeiro, casos houve em que a este se juntaram factores como uma gestão descuidada do investimento público (a situação portuguesa é paradigmática, bastando recordar as ruinosas opções pela construção de centenas e quilómetros de auto-estradas e de pontes de duvidosa ou nula utilidade, excepto para as empresas de construção civil, para os bancos que as financiaram e para a empresas que “ganharam” as concessões de exploração e cobrança de portagens, a opção por investimentos de reduzida ou nula rentabilidade económica, como o Centro Cultural de Belém, a EXPO-98, o EURO-2004 e a criação das famosas Parcerias Público-Privadas para a realização de investimentos que no geral asseguram rendas faraónicas aos seus promotores e encargos de igual dimensão aos contribuintes), quando não verdadeiramente predatória, é que parece de pugnar pela defesa da ideia duma auditoria a todo este modelo de funcionamento.

O desmesurado avolumar das dívidas públicas, a constatação da tendência de quebra generalizada das economias e a insistência numa solução através da aplicação de políticas recessivas que estão a depauperar ainda mais as economias, constitui um caminho seguro para que os Estados, mais cedo que tarde, comecem a anunciar sucessivos incumprimentos ou a apresentar propostas para a sua reestruturação. Esta mesma ideia foi defendida em finais de Julho por Paulo Miguel Madeira quando, num artigo do PUBLICO intitulado «A discussão sobre dívida pública que já devíamos ter feito», escreveu: «O facto de a probabilidade de reestruturação futura ser muito elevada radica, contas sobre taxas de juro à parte, no facto de que o que é impagável agora será ainda mais impagável depois de a economia dar o trambolhão que vai sofrer devido ao programa político imposto pela União Europeia (através da Comissão e do BCE) e pelo FMI como condição para o resgate financeiro de Portugal. O reequilíbrio das contas públicas e das contas externas nacionais teria inevitavelmente de acontecer, com um impacto inicial sempre negativo. Poderia era ser feito noutros moldes, com uma política que deixasse antever crescimento da economia a médio prazo».

Antes que o evidente fracasso da solução da “consolidação orçamental expansionista”, eufemismo para designar as políticas restritivas na moda, origine a generalização das reestruturações,é realmente importante, tal como defendi a propósito do recentemente descoberto “buraco” financeiro das contas da Região Autónoma da Madeira, no “post” «O BICHO DA MADEIRA», «… que a dívida pública, toda a dívida pública, seja objecto dum rigoroso processo de auditoria, quer no sentido do apuramento definitivo dos valores quer no da rigorosa determinação da sua cabimentação e indispensável aprovação, a fim dela ser extirpada de tudo o que foram ganhos indevidos porque aos cidadãos compete recusarem-se a pagar toda a dívida resultante de oportunismos e compadrios que têm medrado (e enriquecido) a expensas do prejuízo geral». Este procedimento aliviaria a dívida e seria muito mais pedagógico que a aplicação dum “haircut” genérico sobre o saldo em dívida, como se fez no caso grego, além do que transmitiria uma clara imagem da mudança de atitude dos gestores públicos.

Reconhecidas as verdadeiras origens desta crise e aceite a indispensabilidade da sua reestruturação (quer através da eliminação da dívida “suspeita” ou “ilícita”, quer da extensão da sua maturidade ou da conjugação das duas) ficará a faltar apenas um passo para que se minimize a probabilidade da sua repetição no futuro.

Esse passo, um pequeno passo mas um verdadeiro salto de gigante na protecção do interesse geral, consiste tão simplesmente em fazer regressar o poder de criação da moeda à esfera pública, pois só o fim do monopólio privado desse poder poderá assegurar que os Estados e o interesse colectivo não voltem a ver-se na posição de reféns dos interesses pessoais dum pequeno número de grandes banqueiros.

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