terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

POLÍTICA FISCAL OU POLÍTICA DE AVESTRUZ?

Quando escrevia o “post” anterior (A CRISE, O EMPREGO E O RENDIMENTO) anotei, mentalmente, a necessidade de também abordar a questão da política fiscal enquanto componente de um programa económico de combate à crise, mas por não assumir a mesma relevância estrutural de políticas como a da limitação da emissão de moeda à esfera pública ou a da inversão do actual modelo de distribuição da riqueza, fui deixando aquela questão para uma outra oportunidade.

Uma notícia do PUBLICO que afirma que o «Estado “paga” a grupos bancários para investir no estrangeiro» e outra do DIÁRIO DIGITAL que garante que o «Regime fiscal dos fundos de investimento está desadequado» por revelarem à evidência o anacronismo de políticas fiscais ditadas em alegado benefício dos pequenos investidores que acabam beneficiando os grandes interesses económicos (até porque os pequenos investidores sensatos há muito abandonaram um mercado distorcido em benefício dos grandes operadores) e prejudicando até o erário público, levou-me a pegar no tema mais cedo do que o esperado.


Para muita gente, em Portugal, a expressão benefícios fiscais significa a oportunidade de quem apresenta grandes rendimentos poder pagar menos impostos, ou na linguagem mais técnica o recurso a práticas de planeamento fiscal agressivo[1]. Como em muitas outras situações, bem avisada anda a “vox populis” pois lendo o conteúdo daquelas notícias rapidamente nos apercebemos que, seguindo a linha de pensamento dominante, um grupo de “conhecedores” tem aproveitado os benefícios fiscais gizados para atrair os pequenos aforradores para o investimento em fundos mobiliários e imobiliários (com compreensíveis benefícios face aos elevados riscos induzidos pela sua reduzida cultura financeira e fraco conhecimento dos mercados de capitais).


Segundo uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças, citada pelo PUBLICO «"Os principais participantes [nos fundos de investimento] são grandes investidores, a quase totalidade dos investimentos é efectuada fora do território nacional e a maioria dos fundos de investimento imobiliário são fechados" - isto é, não permitem a entrada a novos investidores - "e destinam-se a gerir patrimónios empresariais ou particulares"», fenómeno que como está bem de ver não só subverte o conceito do benefício, como resulta em óbvio prejuízo da receita fiscal (a notícia refere mesmo que na «amostra analisada pela IGF, a taxa média de tributação foi de 14 por cento, devido ao facto de 25 por cento dos rendimentos terem sido gerados por mais-valias de acções isentas ou quase isentas de imposto») mas numa razoável mais-valia[2] para os investidores “espertos”.


Tudo isto era já suficientemente grave, mas para que não restem quaisquer dúvidas sobre os verdadeiros interesses representados por aqueles que nos têm governado (desde os que criaram o “benefício” até aos actuais); veja-se que aquelas conclusões constam de um trabalho realizado há mais de 16 meses e que continua a aguardar que alguma decisão seja tomada sobre as propostas de correcção…


É evidente que além da óbvia prática de uma política de avestruz, os responsáveis pelas finanças públicas nacionais revelam ainda um total desinteresse por aquilo que os teóricos da actividade designam pelo princípio da equidade e um ainda maior desrespeito por aquele que deveria ser o “leit motiv” do exercício dos seus cargos públicos: a gestão da coisa pública em benefício da maioria e não em prejuízo desta para benefício de uma minoria.
E de que minoria se trata?


A de um conjunto de “conhecedores” das entrelinhas das leis e dos despachos normativos (muitas das vezes aconselhados pelos que intencionalmente produziram as lacunas) que além do mais detém o poder financeiro para multiplicar aquele efeito.

E quem voltamos a encontrar envolvido em mais esta manigância (perfeitamente legal mais eticamente condenável)?

O conjunto do sistema financeiro que se não originou o movimento nada fez para o restringir e não escamoteou a hipótese de cobrar mais umas comissões.

Tudo isto revela à evidência a completa ineficácia da política fiscal enquanto mecanismo orientado para a redistribuição da riqueza – continuam a ser os que apresentam maiores rendimentos a incorrer em menores custos fiscais – além de demonstrar a medonha falácia que foi o tão propagandeado “capitalismo popular”.

Esta ideia, popularizada nas décadas de 80 e 90 do século passado quando os governos da época, liderados por Cavaco Silva, deram início a uma política de rápida privatização de muitos dos sectores de actividade que tinham sido nacionalizados na sequência do 25 de Abril (seguindo religiosamente os ditames do FMI e do Consenso de Washington[3]), segundo normas que só muito pontualmente protegeram os interesses dos pequenos investidores. Passou então a ser norma a venda das empresas públicas a preços normalmente inflacionados (opção que poderá ter aumentado a receita encaixada pelo Estado em cada operação mas em nada contribuiu para a dispersão do capital das empresas por um número elevado de pequenos accionistas, como se anunciava ser intenção) e à venda de grandes lotes de capital a interesses manifestamente monopolistas, práticas que se em pouco contribuíram para a dinamização do tal mito do “capitalismo popular” foram seguramente responsáveis por parte significativa dos prejuízos em que acabaram por incorrer os pequenos aforradores incautos.

Como se conclui de tudo isto, não só a política fiscal se revela insuficiente para combater de forma eficiente os desequilíbrios gerados no processo de distribuição da riqueza, como ao longo das últimas décadas esta tem sido utilizada não para minimizar aquele fosso mas sim para o ampliar.
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[1] Quando nos idos de 80 um ministro das finanças se viu envolvido numa polémica em torno da aquisição de uma habitação, na modalidade de permuta, e na fuga ao pagamento do respectivo imposto, a expressão planeamento fiscal agressivo entrou no léxico corrente como sinónimo de “esquema” pouco claro para redução ou eliminação da tributação fiscal. A expressão planeamento fiscal contém já em si a noção de forma de minimizar os custos fiscais, dentro dos limites integrais da lei, o que pode ser alcançado mediante a opção por negócios jurídicos com menor ou nula tributação.
[2] Basta lembrar que a taxa retenção fiscal é de 20% ou 25% conforme a origem dos rendimentos sejam estrangeiros ou nacionais.
[3] Consenso de Washington foi a designação que popularizou o conjunto de medidas de natureza económica (com especial incidência nas ideias neoliberais e monetaristas de livre mercado e livre concorrência, da minimização do papel do Estado na economia e de desregulamentação de mercados e actividades) que o FMI e o Banco Mundial passaram a aplicar em todas as economias onde eram chamados a intervir.

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