domingo, 15 de fevereiro de 2009

A CRISE, O EMPREGO E O RENDIMENTO

Quando em meados desta semana o “patrão” da JERÓNIMO MARTINS, Soares dos Santos, abordou a situação da crise económica durante a sua intervenção no Congresso do 10.º aniversário da Associação das Empresas Familiares e criticou os governantes pela demagogia das suas declarações contra os empresários e das medidas tomadas para combater a crise, ainda não eram conhecidos os últimos dados do INE que confirmam a continuação da quebra do PIB (-2% no quarto trimestre de 2008).

Como é do conhecimento geral uma economia em recessão significa um rápido crescimento do desemprego e mesmo que, como o escreveu o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Soares dos Santos tenha garantido que não tenciona recorrer a tal prática, essa não é a actuação geral, mas sim a que referia no final de Janeiro o JORNAL DE NEGÓCIOS quando escreveu que «Empresas mundiais anunciam corte de 150 mil empregos numa semana».

O chamado flagelo do desemprego não é apenas um problema, e dos graves, de natureza social, é também um problema de natureza económica e de complicada resolução dentro dos cânones económicos vigentes. Qualquer que seja a escola de pensamento (desde a ultraliberal até à mais keynesiana), em termos económicos é inevitável o aumento do desemprego em períodos de recessão económica, pois o factor trabalho é entendido como uma das “peças” da máquina produtiva e uma daquelas cujo “corte” é mais fácil, rápido e que melhores reflexos apresenta sobre os resultados.
Duvidam?
Então vejam estas notícias do LE MONDE, que na passada sexta-feira anunciava que a França regista a pior crise desde 1975 (ver a primeira notícia «La France connait la pire récession depuis 1975» e, em simultâneo, que os accionistas das empresas do CAC40[1] foram poupados pela crise (e a segunda «Les accionaires des entreprises du CAC40 épargnés par la crise»).
Embora a conclusão possa ser extemporânea e precipitada, porque em 2008 o aumento do desemprego apenas estava a conhecer os primeiros casos, nem por isso deixa de ser reveladora da verdadeira dimensão da crise que se regista e que em poucas palavras se poderia sintetizar assim: lucros para uns quantos e sacrifícios para os restantes.

Não será pois de estranhar que se olhe com crescente preocupação a subida dos números do desemprego e dos efeitos que eles terão sobre a qualidade de vida das famílias.

Mas o problema do desemprego não se reflecte apenas na dimensão social e no empobrecimento das camadas economicamente mais frágeis da população; contrariamente ao que defendem as correntes mais liberais do pensamento económico, para as quais o desemprego é em si um importante factor para a manutenção de salários baixos (e, logo, de maiores lucros), o desemprego é também factor de agravamento das crises económicas e em especial, como sucede com a actual, quando os mercados se retraem de forma acentuada. E este é um dos grandes dilemas que a corrente neoliberal e monetarista persiste em ignorar, talvez por não apresentar qualquer solução credível, pois uma subida acentuada nos níveis de desemprego vai-se repercutir numa inevitável redução da procura e na criação de um consequente ciclo de sobreprodução, tanto mais que grande parte desta está orientada para a satisfação de necessidades básicas (aquela relativamente à qual os sectores mais endinheirados revelam menor elasticidade[2]) e quanto maior esta for e mais as empresas respondam com a mezinha de cada vez maior número de despedimentos, menores serão as possibilidades de verem crescer a procura dos produtos que fabricam ou comercializam.

Quando os elevados rendimentos das camadas enriquecidas da população se revelam cada vez menos adequados ao relançamento das economias e é cada vez maior a preocupação dos que ainda têm trabalho em preservar os seus parcos rendimentos (é proverbial a tendência para evitar gastos em épocas de crise), estarão reunidas todas as condições para o aprofundamento da crise.

Esta invulgar propensão ao aforro das famílias está-se a revelar como mais um importante factor de estrangulamento das economias já grandemente debilitadas pelas revelações das manigâncias financeiras associadas ao sector financeiro e à especulação[3] e perante ela as medidas que os governantes nacionais e internacionais têm vindo a propor soam particularmente inadequadas (demagógicas, na expressão de Soares dos Santos) ou até inaceitáveis (na perspectiva dos que vêem esfumar-se os seus postos de trabalho).

Estaremos perante um círculo vicioso e sem solução, ou esta está à vista de todos mas aqueles que grandemente têm beneficiado com o modelo económico em vigor recusam-se a contemplar a sua aplicação?

Na realidade a solução é óbvia e bem evidente para todos, salvo para quem a não quer ver... Se um dos problemas da recessão económica é a redução da procura (principalmente representada pelo consumo das famílias, cuja retracção origina que o investimento das empresas seja protelado até à reanimação dos mercados), então a óbvia solução será a promoção da sua reanimação, não da forma como a administração Bush o tentou (alguém ainda se lembra do montante do estímulo fiscal que era suposto as famílias terem convertido em consumo de bens e serviços) mas através de uma nova política de distribuição de rendimentos que, relançando o poder de compra da maioria da população, reanime o conjunto da actividade económica.

Comprovado o fracasso prático de estímulos fiscais e outras medidas pontuais, como forma de redistribuição da riqueza, torna-se cada vez mais óbvia a necessidade de trazer para o debate outras vias para o atingir. A primeira e mais óbvia – a do aumento generalizado dos salários – será naturalmente recebida pelas associações patronais e pelos defensores do liberalismo económico como mais uma inaceitável intromissão do Estado na esfera privada e no livre funcionamento do mercado; assim, só resta ponderar a hipótese de criação de um modelo assente na distribuição de um rendimento garantido, segundo o princípio do pagamento de um dividendo “per capita” em função do PIB.

Para quem comece já a questionar sobre a viabilidade de semelhante medida, recordo que modelos desta natureza estão actualmente em vigor e que um dos locais onde isso acontece é nos EUA, ou melhor no estado do Alasca, onde desde o início do processo de exploração petrolífera e como forma de tentar fixar definitivamente muita da mão-de-obra que para lá se deslocou para a realização das infraestruturas petrolíferas, foi decidida a criação de um fundo (o Alaska Permanent Fund) alimentado pelas receitas das concessões petrolíferas cujo rendimento anual é distribuído pelos residentes.

No caso de economias, como a portuguesa, que não dispõe do recurso a este tipo de receitas sempre poderão recorrer a receitas provenientes de outras concessões (mineiras, aquíferos, produção hidroeléctrica, eólica, etc.) ou condicionar a sua aplicação à capacidade dos Estados retirarem à banca comercial o monopólio da emissão de moeda.

A consagração universal do princípio da distribuição de um rendimento garantido não constitui apenas uma medida de combate à crise económica; será, além de uma medida de justiça social (o PIB resulta da contribuição de toda a população para a produção nacional, pois se os que têm emprego contribuem de forma directa, os que o não têm contribuem indirectamente por via do consumo), uma boa forma de começarmos a preparar-nos para um futuro em que, graças aos desenvolvimentos tecnológicos e aos ganhos de produtividade, dificilmente existirão empregos para toda a gente.
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[1] Designação do índice bolsista do Mercado francês (cujo nome deriva da expressão Cotation Assistée en Continu (Cotação Assistida em Contínuo), que engloba as 40 acções com melhor desempenho e maior liquidez.
[2] Entenda-se aqui o conceito econométrico de elasticidade (relação entre a variação de duas variáveis) no sentido de que ninguém, por maior que seja o seu rendimento vai passar a comer dois almoços ou dois jantares por dia.
[3] No caso da economia americana, a esta apreciação dever-se-á ainda acrescentar os gastos desmesurados com as invasões do Afeganistão e do Iraque e o efeito devastador da deslocalização da produção para os países com mão-de-obra mais barata.

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