No rescaldo da
decisão da administração norte-americana onde Jerusalém
é reconhecida como capital de Israel, das reacções do mundo árabe e
muçulmano, que levaram
o Egipto a apresentar uma proposta de resolução ao Conselho de Segurança da ONU,
e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, a afirmar que a «Decisão
dos EUA sobre Jerusalém "não é lógica" e complica soluções».
Já conhecido o
desfecho da reunião do Conselho de Segurança, onde os «EUA
vetam resolução do Conselho de Segurança sobre Jerusalém», proponho hoje
uma abordagem diversa de quase todas as que temos lido sobre o assunto,
apelando ao enquadramento histórico do chamado conflito israelo-palestiniano.
O texto (pode ser lido aqui
na versão francesa) é da
autoria do historiador israelita Shlomo Sand, versa sobre as origens do povo
judaico e foi apresentado como uma desconstrução do mito histórico que é a
ideia de que os judeus seriam descendentes directos de Moisés, David e
Salomão; como tantos outros povos, eles formaram-se num processo histórico rico
e contraditório, que envolve múltiplas etnias e não cabe na descrição religiosa
e fundamentalista que ainda prevalece. Foi publicado
em 2008 nas página do LE MONDE
DIPLOMATIQUE (a tradução é da minha responsabilidade) a propósito do lançamento
do seu livro «A invenção do povo judeu» e talvez ajude a compreender uma outra
visão que vai além da solução “dois povos-dois estados” agora formalmente posta
em causa.
COMO FOI INVENTADO O POVO
JUDEU
por Shlomo Sand
Qualquer israelita sabe que o povo judeu
existe desde a entrega da Torah [1] no
monte Sinai e se considera seu descendente directo e exclusivo. Todos estão
convencidos de que os judeus saíram do Egipto e se fixaram na Terra Prometida,
onde edificaram o glorioso reino de David e Salomão, posteriormente dividido
entre Judéia e Israel. E ninguém ignora o facto de que esse povo conheceu o
exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século VI
a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.
Foram quase dois mil anos de errância
desde então. A tribulação levou-os ao Iémen, a Marrocos, à Espanha, à Alemanha,
à Polônia e até aos confins da Rússia. Felizmente, eles sempre conseguiram
preservar os laços de sangue entre as comunidades, tão distantes umas das
outras, e mantiveram a sua unicidade.
As condições para o retorno à antiga
pátria amadureceram apenas no final do século XIX. O genocídio nazi, porém,
impediu que milhões de judeus repovoassem naturalmente a terra de Israel (Eretz
Israel), um sonho de quase vinte séculos.
Virgem, a Palestina esperou que seu povo
original regressasse para florescer novamente. A região pertencia aos judeus, e
não àquela minoria desprovida de história que chegou lá por acaso. Por isso,
foram justas as guerras realizadas a partir de 1948 pelo povo errante para
recuperar a posse de sua terra;. a oposição da população local é que era
criminosa.
De onde vem essa interpretação da história
judaica, amplamente difundida e acima resumida? Trata-se de uma obra do século XIX,
feita por talentosos reconstrutores do passado, cuja imaginação fértil
inventou, sobre a base de pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um
encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu. É verdade que a abundante
historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas as concepções
essenciais. elaboradas no final do século XIX e princípio do XX. nunca foram
questionadas.
Quando apareciam descobertas capazes de
contradizer a imagem do passado linear, elas praticamente não tinham eco. O
imperativo nacional, qual boca solidamente amordaçada, bloqueava qualquer
espécie de contradição ou desvio em relação ao relato dominante. E as
instâncias específicas de produção do conhecimento sobre o passado judeu – os
departamentos exclusivamente dedicados ao estudo da “história do povo judeu”
são bastante distintos daqueles da chamada “história geral” – contribuíram
muito para essa curiosa paralisia. Nem o debate, de carácter jurídico, sobre
“quem é judeu” preocupou esses historiadores: para eles, é judeu todo o descendente
do povo forçado ao exílio há dois mil anos.
Esses pesquisadores “autorizados” tão-pouco
participaram da controvérsia trazida pelos “novos historiadores” do final dos
anos 1980. A maioria dos actores desse debate público, em pequeno número, veio
de outras disciplinas ou de meios extra-universitários: foram sociólogos,
orientalistas, linguistas, geógrafos, especialistas em ciência política,
pesquisadores em literatura e arqueólogos que formularam novas reflexões sobre
o passado judaico e sionista, alguns deles vindos do estrangeiro. Dos
“departamentos de história judaica” só surgiram rumores temerosos e
conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias
preconcebidas.
Judaísmo, religião proselitista
Ou seja, em sessenta anos, a história nacional
amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá no curto prazo. Porém, os
factos revelados pelas novas pesquisas apresentam a qualquer historiador
honesto questões surpreendentes à primeira vista, mas fundamentais.
Pode a Bíblia ser vista como um livro de
história? Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost e
Léopold Zunz, não a encaravam assim no começo do século XIX: aos seus olhos, o
Antigo Testamento era um livro de teologia constitutivo das comunidades
religiosas judaicas depois da destruição do Primeiro Templo. Foi preciso
esperar pela segunda metade do século XIX para encontrar historiadores como
Heinrich Graetz, que teve uma visão “nacional” da Bíblia: transfromaram a partida de Abraão para Canaã,
a saída do Egito e até o reinado unificado de David e Salomão em relatos de um
passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não
deixaram de reiterar essas “verdades bíblicas”, transformadas no alimento quotidiano
da educação israelita.
Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a
terra treme, abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológicas
contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa
era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito,
nem tê-los conduzido à “terra prometida” — pelo simples facto de que, naquela
época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios! Aliás, não existe nenhum
vestígio de revolta de escravos no reinado dos faraós, nem de uma conquista
rápida de Canaã por estrangeiros.
Tão-pouco há sinal ou lembrança do sumptuoso
reinado de David e Salomão. As descobertas da última década mostram a
existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais poderoso, e Judá, a futura Judéia.
Os habitantes desta última não sofreram nenhum exílio no século VI a.C.: apenas
as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilónia, de cujo
encontro decisivo com os cultos persas é que nasceu o monoteísmo judaico.
E o exílio do ano 70 d.C. teria
efetivamente acontecido? Paradoxalmente, esse “evento fundador” da história dos
judeus, de onde a diáspora tira sua origem, não originou o menor trabalho de
pesquisa. E por uma razão bem prosaica: os romanos nunca exilaram povo nenhum
em toda o flanco oriental do Mediterrâneo. Com excepção dos prisioneiros
reduzidos à escravidão, os habitantes da Judéia continuaram a viver nas suas
terras mesmo após a destruição do Segundo Templo.
Uma parte deles converteu-se ao
cristianismo no século IV, enquanto a maioria aderiu ao Islão, durante a
conquista árabe do século VII. A maior parte dos pensadores sionistas não
ignoravam isso: tanto Yitzhak Ben Zvi, que seria presidente de Israel, quanto
David Ben Gurion, fundador do país, escreveram-no até 1929, ano da grande
revolta palestiniana. Ambos mencionam em várias ocasiões, o facto dos
camponeses da Palestina serem os descendentes dos habitantes da antiga Judéia [2].
À falta de um exílio a partir da Palestina
romanizada, de onde vieram os judeus que povoaram o perímetro do Mediterrâneo
desde a Antiguidade? Por trás da cortina da historiografia nacional, esconde-se
uma surpreendente realidade histórica. Da revolta dos Macabeus, no século II
a.C., à revolta de Bar Kokhba, no século II d.C., o judaísmo foi a primeira
religião proselitista. Os asmoneus (ou macabeus) já tinham convertido à força
os edomitas da Judeia do Sul e os itureus da Galileia, anexando-os ao “povo de
Israel”. Partindo desse reino judeu-helenista, o judaísmo espalhou-se por todo
o Oriente Médio e pelas margens do Mediterrâneo. No primeiro século de nossa
era surgiu no território do atual Curdistão, o reino judeu de Adiabena, ao qual
se seguiram outros com as mesmas características.
Os textos de Flávio Josefo não são a única
evidência do ardor prosélito dos judeus. De Horácio a Sêneca, de Juvenal a Tácito,
muitos escritores latinos expressaram os seus receios. O Mishná e pelo Talmude [3] permitem essa prática de conversão – mesmo que, diante da crescente
pressão do cristianismo, os sábios da tradição talmúdica expressem reservas
sobre isso.
O êxito da religião de Jesus, no começo do
século IV, não colocou fim à expansão do judaísmo, mas empurrou o seu
proselitismo para as margens do mundo cultural cristão. No século V, no lugar
do actual Iémen, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar cujos descendentes mantiveram
a fé judaica após a expansão do Islão e preservam-na até aos dias de hoje. Também
os cronistas árabes nos contam sobre a existência , no século VII, de tribos
berberes judaizadas: face à pressão árabe sobre o norte de África surgiu a
figura lendária da rainha judia Dihya-el-Kahina, que tentou detê-lo. Esses
berberes judaizados participarão na conquista da Península Ibérica estabelecendo
ali os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos,
característica da cultura hispano-arábe.
A conversão em massa mais significativa
ocorreu, no século VIII, no imenso reino khazar entre o mar Negro e o mar Cáspio.
A expansão do judaísmo do Cáucaso até à actual Ucrânia originou várias
comunidades que seriam expulsas para o Leste europeu pelas invasões mongóis do
século XIII. Lá, os judeus vindos das regiões eslavas do sul e dos atuais
territórios alemães estabeleceram as bases da grande cultura ídiche [4].
Estas narrativas das origens plurais dos
judeus aparecem mais ou menos hesitantes na historiografia sionista até a
década de 1960; sendo em seguida progressivamente marginalizadas antes de
desaparecerem da memória pública em Israel. Os conquistadores da cidade de David,
em 1967, tiveram que ser descendentes diretos do seu reino mítico e não - Deus
não permita! - os herdeiros de guerreiros berberes ou cavaleiros Khazar. Os
judeus são então um "ethnos" específico que, depois de dois mil anos
de exílio e errânciua, regressou finalmente a Jerusalém, a sua capital.
Os proponentes desta narrativa linear e
indivisível não mobilizam apenas o ensino da história: convocam também a
biologia. Em Israel, desde os anos de 1970 uma sucessão de pesquisas
"científicas" tentou demonstrar, por todos os meios, a proximidade
genética dos judeus em todo o mundo. A "pesquisa sobre as origens das
populações" é agora um campo legítimo e popular de biologia molecular,
enquanto o cromossoma Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio
judia [5] numa busca frenética da singularidade original do
"povo escolhido".
Essa concepção histórica constitui a base
da política identitária do estado de Israel e é exactamente esse o seu ponto
fraco. Presta-se efectivamente a uma definição essencialista e etnocentrista do
judaísmo, alimentando uma segregação que mantém a distância entre judeus e
não-judeus (tanto árabes como emigrantes russos ou trabalhadores imigrantes).
Israel, sessenta anos após a sua fundação,
recusa conceber-se como uma república existente para os seus cidadãos. Quase um
quarto deles não é considerado judeu e, de acordo com o espírito das suas leis,
esse estado não lhes pertence. Por outro lado, Israel ainda se apresenta como o
estado dos judeus do mundo inteiro, mesmo que não seja mais uma questão de
refugiados perseguidos, mas de cidadãos plenos e iguais que vivem em plena
igualdade nos países onde residem. Por outras palavras, uma etnocracia sem
fronteiras justifica a severa discriminação que pratica contra alguns dos seus
cidadãos invocando o mito da nação eterna, reconstituído para se reunir na
"terra dos seus antepassados".
Escrever uma nova história judaica, para além
do prisma sionista, não é tarefa fácil. A luz que reflecte é transformada em
cores etnocêntricas. No entanto, os judeus sempre formaram comunidades
religiosas organizadas, principalmente pela conversão, em várias regiões do
mundo: elas não representam um éthnos portador de uma única origem e que
se teria deslocado ao longo de vinte séculos.
Sabemos que o desenvolvimento de toda
historiografia — e, de maneira geral, as da modernidade — passa pela invenção
do conceito de nação, que ocupou milhões de seres humanos nos séculos XIX e XX.
O desenvolvimento de toda a historiografia
como, genericamente, o processo da modernidade passa, como sabemos, pela
invenção da nação. Ele ocupou milhões de seres humanos no século XIX e durante
uma parte do XX. Recentemente, porém, esses sonhos começaram a ruir. Un número
cada vez maior de pesquisadores analisam, dissecam e desconstroem os grandes
relatos nacionais e, principalmente, os mitos da origem comum, caros aos
cronistas do passado. Certamente os pesadelos identitários de ontem darão
espaço, amanhã, a outros sonhos de identidade. Assim como toda a personalidade
é feita de identidades fluidas e variadas, também a história é uma identidade
em movimento.
[1] Texto fundador do judaísmo, a Torah é
composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Génese, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronómio.
[2] Cf. David ben Gurion e Yitzhak ben Zvi, Eretz
Israel no passado e no presente (1918, em ídiche), Jerusalém,
Yitzhak ben Zvi, 1980 (em hebraico), e Yitzhak ben Zvi, Nossa população no
país (em hebraico), Varsóvia, Comité Executivo da União da Juventude e o
Fundo Nacional Judeu, 1929.
[3] A Mischna, considerada como a primeira
obra de literatura rabínica, foi concluída no século II d.C. O Talmude
sintetiza o conjunto dos debates rabínicos respeitantes à lei, aos costumes e à
história dos judeus. Há dois Talmudes: o da Palestina, escrito entre os séculos
III e V, e o da Babilónia, concluído nos finais do século V.
[4] Falado pelos judeus da Europa oriental,
o ídiche é uma língua eslavo-germânica, com palavras vindas do hebraico.
[5] Na mitologia grega Clio era a musa da
História.»
2017-12-20
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