Na data em que se assinalam vinte anos sobre a sua morte e quando se
espera para Outubro a publicação dum novo álbum de Corto Maltese[1] – o
personagem que criou e lhe granjeou reconhecimento geral –, mais que se justifica
lembrar esse nome mítico da 9ª arte, que foi Hugo Pratt e cuja vida e obra
podem ser tão intimamente misturadas e indissociáveis.
Itinerâncias
Nascido em 1927, numa família veneziana onde se misturavam a ascendência
inglesa, por parte do pai, e a judaico-espanhola, por parte da mãe (o avô
materno, que retratará em “Fábula de Veneza”, era o poeta Eugenio Genaro e um dos
fundadores do fascismo veneziano),
rapidamente se viu envolvido no turbilhão duma Itália onde o fascismo em
ascensão redescobre o fascínio imperial e colonialista.
Muito jovem, Hugo Pratt chega a solo africano instalando-se com os pais
na Abissínia; quando a guerra eclode, é alistado no exército fascista com a
idade de 13 anos, tornando-se, como ele o referiu, o mais jovem soldado de
Mussolini. Destruído o sonho duma Itália colonialista, o pai morto, Hugo Pratt
e a mãe serão repatriados pela Cruz Vermelha. Esta sucessão de viagens desde a
infância, uma família cosmopolita e muito feminina, versada nos mistérios da
cabala e do esoterismo, convida à pesquisa, às deslocações geográficas e à
viagem interior.
Guiado por uma curiosidade sem limites, Hugo Pratt conduziu a sua vida e
a sua obra como uma busca; …busca de si próprio e vagabundagem para compreender,
um pouco mais e um pouco melhor, o mundo.
Depois, por trabalho ou prazer, Pratt não deixará mais de cruzar o mundo:
Europa, África, América, cada viagem leva-o um pouco mais longe na sua busca… Da
sua longa estadia na Argentina, dirá: «A
Argentina fez de mim um adulto …», mas foi em França que primeiramente lhe
reconheceram o talento.
Um pouco da
obra…
Tendo iniciado a sua carreira de desenhador (como o próprio reconheceu
sob a forte influência do norte-americano Milton Caniff), colaborou com
argumentistas, como o italiano Alberto Ongaro (Asso di Picche), o argentino
Hector Oesterheld (argumentista e editor desaparecido durante a ditadura do
general Videla, com o qual criou as figuras de Sargento Kirk, Ticonderoga e
Ernie Pike). Ainda do período argentino datam os primeiros trabalhos a solo
(Ana da Selva, Capitão Cormorant e Wheeling, uma sequela de Ticonderoga) e as
primeiras evidências do despoletar dum estilo próprio.
De regresso a Itália lança, com o promotor Fiorenzo
Ivaldi, a revista Sargento Kirk em cujas páginas serão publicadas as primeiras
pranchas da “Balada do Mar Salgado”, obra que marcará definitivamente o
nascimento de Corto Maltese e o mito de Hugo Pratt.
Profundamente marcado pelo fenómeno da guerra, legou-nos a sua visão dos
conflitos em muitas da suas obras (principalmente em “Ernie Pike” e nos
“Escorpiões do Deserto”, série que foi a primeira conhecer um continuador no
desenhador suíço Pierre Wazem, ou nos seus últimos trabalhos: “Sob um Céu
Longínquo” e “Morgan”), mas à semelhança de tantos outros autores, uma das principais
fontes de inspiração de Pratt, são os seus encontros, nomeadamente com as
mulheres; como o seu criador, Corto, cruzar-se-á com muitas mulheres
excepcionais durante as suas peregrinações, mas nenhuma o fará abandonar o seu
nomadismo!
Na sua obra deixou-nos soberbos “retratos” dum
feminino sempre presente mas muitas vezes inacessível, com destaque para duas
das suas obras mais tardias (“Um Verão Índio”, de 1983 e “El Gaúcho”, de 1991)
onde curiosamente deixou o desenho para Milo Manara, assumindo apenas o papel
de argumentista.
Dotado duma
elegância e virtuosidade muito próprias, o artista, que sempre fez questão de
se considerar apenas um artesão, legou-nos obras plenas duma sensibilidade que
questiona sem ambiguidades os grandes valores da vida ou não a tivesse
encerrado com uma reflexão sobre Antoine de Saint-Exupéry no seu “O Último Voo”.
O homem que
amava os livros
Aguarelista de talento, desenhador reconhecido e escritor confirmado,
Pratt era também um grande bibliófilo e um leitor insaciável; na sua casa de
Grandvaux, na Suíça, possuía uma biblioteca com cerca de 30.000 obras, onde
destacava os "travel writers", principalmente anglófonos. O próprio
disse que «A minha geografia está sempre
ligada a um mundo literário e fantástico. Para mim, uma viagem é uma descoberta
despertada por uma leitura.» (Le désir d'être inutile), pelo que não se
estranham as contantes referências literárias (e não só) a nomes como Jack
London, James Curwood, Rimbaud, Hesse, Kipling, Yeats e tantos outros.
Citava R.L. Stevenson e a fabulosa descrição da ilha do tesouro como a
sua referência em matéria de inspiração; muitos do seus personagens, onde Corto
Maltese é sempre o paradigma, procuram um tesouro… mas é o seu mundo interior
que Pratt explora e ilustra.
Esse formidável narrador, desenhador de talento,
inspirado tanto pela literatura e pelo cinema como pela mitologia, era um
artista complexo e tornou-se rapidamente um personagem de culto…um mito vivo!
Em 1995 trocou o mundo real pelo dos sonhos, ele que dizia: «Acontece-me não ter vontade de sair do mundo
dos mitos, deixando até de saber onde está o mundo real».
[1] A nova obra terá autoria duma dupla espanhola composta por Juan Diaz Canales, autor de “Blacksad”, e Rúben
Pellejero, que desenhou “Dieter Lumpen” e terá como título “Sous le Soleil de
Minuit”.
Sem comentários:
Enviar um comentário