quinta-feira, 20 de agosto de 2015

HUGO PRATT – EM BUSCA DA LIBERDADE PERDIDA

Na data em que se assinalam vinte anos sobre a sua morte e quando se espera para Outubro a publicação dum novo álbum de Corto Maltese[1] – o personagem que criou e lhe granjeou reconhecimento geral –, mais que se justifica lembrar esse nome mítico da 9ª arte, que foi Hugo Pratt e cuja vida e obra podem ser tão intimamente misturadas e indissociáveis.


Itinerâncias

Nascido em 1927, numa família veneziana onde se misturavam a ascendência inglesa, por parte do pai, e a judaico-espanhola, por parte da mãe (o avô materno, que retratará em “Fábula de Veneza”, era o poeta Eugenio Genaro e um dos fundadores do fascismo veneziano), rapidamente se viu envolvido no turbilhão duma Itália onde o fascismo em ascensão redescobre o fascínio imperial e colonialista.

Muito jovem, Hugo Pratt chega a solo africano instalando-se com os pais na Abissínia; quando a guerra eclode, é alistado no exército fascista com a idade de 13 anos, tornando-se, como ele o referiu, o mais jovem soldado de Mussolini. Destruído o sonho duma Itália colonialista, o pai morto, Hugo Pratt e a mãe serão repatriados pela Cruz Vermelha. Esta sucessão de viagens desde a infância, uma família cosmopolita e muito feminina, versada nos mistérios da cabala e do esoterismo, convida à pesquisa, às deslocações geográficas e à viagem interior.

Guiado por uma curiosidade sem limites, Hugo Pratt conduziu a sua vida e a sua obra como uma busca; …busca de si próprio e vagabundagem para compreender, um pouco mais e um pouco melhor, o mundo.

Depois, por trabalho ou prazer, Pratt não deixará mais de cruzar o mundo: Europa, África, América, cada viagem leva-o um pouco mais longe na sua busca… Da sua longa estadia na Argentina, dirá: «A Argentina fez de mim um adulto …», mas foi em França que primeiramente lhe reconheceram o talento.

Um pouco da obra…

Tendo iniciado a sua carreira de desenhador (como o próprio reconheceu sob a forte influência do norte-americano Milton Caniff), colaborou com argumentistas, como o italiano Alberto Ongaro (Asso di Picche), o argentino Hector Oesterheld (argumentista e editor desaparecido durante a ditadura do general Videla, com o qual criou as figuras de Sargento Kirk, Ticonderoga e Ernie Pike). Ainda do período argentino datam os primeiros trabalhos a solo (Ana da Selva, Capitão Cormorant e Wheeling, uma sequela de Ticonderoga) e as primeiras evidências do despoletar dum estilo próprio.

De regresso a Itália lança, com o promotor Fiorenzo Ivaldi, a revista Sargento Kirk em cujas páginas serão publicadas as primeiras pranchas da “Balada do Mar Salgado”, obra que marcará definitivamente o nascimento de Corto Maltese e o mito de Hugo Pratt.

Profundamente marcado pelo fenómeno da guerra, legou-nos a sua visão dos conflitos em muitas da suas obras (principalmente em “Ernie Pike” e nos “Escorpiões do Deserto”, série que foi a primeira conhecer um continuador no desenhador suíço Pierre Wazem, ou nos seus últimos trabalhos: “Sob um Céu Longínquo” e “Morgan”), mas à semelhança de tantos outros autores, uma das principais fontes de inspiração de Pratt, são os seus encontros, nomeadamente com as mulheres; como o seu criador, Corto, cruzar-se-á com muitas mulheres excepcionais durante as suas peregrinações, mas nenhuma o fará abandonar o seu nomadismo!


Na sua obra deixou-nos soberbos “retratos” dum feminino sempre presente mas muitas vezes inacessível, com destaque para duas das suas obras mais tardias (“Um Verão Índio”, de 1983 e “El Gaúcho”, de 1991) onde curiosamente deixou o desenho para Milo Manara, assumindo apenas o papel de argumentista.

Dotado duma elegância e virtuosidade muito próprias, o artista, que sempre fez questão de se considerar apenas um artesão, legou-nos obras plenas duma sensibilidade que questiona sem ambiguidades os grandes valores da vida ou não a tivesse encerrado com uma reflexão sobre Antoine de Saint-Exupéry no seu “O Último Voo”.

O homem que amava os livros

Aguarelista de talento, desenhador reconhecido e escritor confirmado, Pratt era também um grande bibliófilo e um leitor insaciável; na sua casa de Grandvaux, na Suíça, possuía uma biblioteca com cerca de 30.000 obras, onde destacava os "travel writers", principalmente anglófonos. O próprio disse que «A minha geografia está sempre ligada a um mundo literário e fantástico. Para mim, uma viagem é uma descoberta despertada por uma leitura.» (Le désir d'être inutile), pelo que não se estranham as contantes referências literárias (e não só) a nomes como Jack London, James Curwood, Rimbaud, Hesse, Kipling, Yeats e tantos outros.


Citava R.L. Stevenson e a fabulosa descrição da ilha do tesouro como a sua referência em matéria de inspiração; muitos do seus personagens, onde Corto Maltese é sempre o paradigma, procuram um tesouro… mas é o seu mundo interior que Pratt explora e ilustra.

Esse formidável narrador, desenhador de talento, inspirado tanto pela literatura e pelo cinema como pela mitologia, era um artista complexo e tornou-se rapidamente um personagem de culto…um mito vivo!

Em 1995 trocou o mundo real pelo dos sonhos, ele que dizia: «Acontece-me não ter vontade de sair do mundo dos mitos, deixando até de saber onde está o mundo real».



[1] A nova obra terá autoria duma dupla espanhola composta por Juan Diaz Canales, autor de “Blacksad”, e Rúben Pellejero, que desenhou “Dieter Lumpen” e terá como título “Sous le Soleil de Minuit”.

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