Quando é cada vez mais evidente (salvo para os indefectíveis que não podem ou não querem admiti-lo...) o papel de total subserviência do actual executivo e dos partidos políticos que há cerca dum ano aceitaram (e aplaudiram) a assinatura dos termos do programa de ajuda externa, muito continua por dizer e esclarecer sobre o assunto.
Mais um exemplo disso é a recente polémica introduzida pela notícia chegada de Bruxelas de que «Corte de subsídios de férias e Natal pode ser definitivo», que mereceu pronta reacção das autoridades nacionais, com o Ministro das Finanças, Vitor Gaspar, a reafirmar que a «Suspensão dos subsídios é temporária» enquanto o «Primeiro-ministro diz que subsídios de férias e Natal só serão repostos em 2015». Confuso? Contraditório? Não! Nada disso, o que afirmou o alto responsável da Comissão Europeia constitui uma mera constatação da realidade que os políticos nacionais têm procurado esconder: os trabalhadores da Função Pública e do Sector Empresarial do Estado viram os seus salários arbitrariamente e definitivamente reduzidos em 14,29%.
O governo de Passos Coelho, profundamente imbuído da “filosofia” neoliberal da construção dum novo estado, à maneira de Fukuyama[1], está apenas a aproveitar uma conjuntura propícia para remodelar a realidade à dimensão daquela teoria. No afã de atingir os seus objectivos, quiçá ciente da precariedade da sua própria posição, não hesitou em romper o contrato político que o ligava aos seus eleitores quando fez tábua rasa das promessas eleitorais relativas às medidas fiscais (promessas que fez sabendo perfeitamente que nunca as iri honrar) mas, ainda mais grave, rompeu igualmente o contrato social que liga o Estado aos Cidadãos quando optou por uma política ostensivamente desfavorável aos mais fracos e desfavorecidos da sociedade. Transformando a chicana política na política do quotidiano, anunciando cada vez maiores restrições orçamentais sobre os sectores mais frágeis (através de cortes orçamentais na saúde e na educação e nas políticas sociais) enquanto protege descaradamente os grandes investidores e os grandes interesses económicos (normalmente estrangeiros e exteriores à sua zona económica e monetária), Passos Coelho não está apenas a aplicar uma metodologia controversa e criticável para combater a crise, está na realidade empenhado na destruição do que ainda resta do estado social que foi começado a criar em Portugal após o 25 de Abril.
E isto é confirmável, não apenas pela constatação de que as opções não constituem uma medida transitória ditada pelas circunstâncias (o que quer que isso signifique) mas antes um grande passo num plano de dimensão bem superior que se não foi pronta e facilmente detectado nas palavras e nos actos dos responsáveis nacionais e europeus, pode ser confirmada com a notícia de que o «Presidente do BCE diz que modelo social europeu “está morto”».
Poderão ainda restar dúvidas para os mais cépticos ou ingénuos que a verdadeira origem da “crise do euro” radica em algo mais que os erros de concepção e de políticas adoptadas na UE e não numa deliberada intenção de enfraquecer o euro (divisa que tem revelado uma extraordinária estabilidade e uma crescente credibilidade) em benefício da manutenção do papel do dólar como única moeda de pagamentos internacionais?
Tais são as evidências de inconfessáveis agendas políticas e económicas que poderão os Passos Coelhos, os Portas ou os Seguros, que por essa Europa pululam, continuar a afirmar, olhos nos olhos, que a sua única e real preocupação são os cidadãos europeus, sem que em resposta recebam uma sonora e rotunda gargalhada de desprezo?
Até quando suportarão os cidadãos a erosão da Europa que ajudaram a construir, quando há décadas – para ser mais preciso, desde que a Queda do Muro de Berlim pôs fim à necessidade de mostrar um “mundo melhor” de cada um dos seus lados – que os interesses económicos se movimentam para liquidar as poucas benesses, para aumentarem ainda mais os seus ganhos, que sentiram obrigados ceder e só se deterão quando sentirem pela frente a determinação daqueles que pretendem fazer regressar aos tempos da pré-história industrial? Os sinais de revolta são crescentes e notícias como a do suicídio dum cidadão grego às portas do parlamento e que a vigília popular que se lhe seguiu terminou em novos tumultos, podem constituir apenas mais um sinal que o limite para a paciência dos cidadãos está próximo e que, contra discursos, promessas e aparelhos repressivos se erguerá a vontade colectiva, única força que hoje parece capaz de fazer regressar o conceito da defesa do interesse geral ao topo das preocupações políticas.
[1] Leia-se em especial o último capítulo de «A Construção de Estados» de Francis Fukuyama, onde o autor expõe a ideia dum estado mais pequeno mas mais forte. Fukuyama, filósofo e economista norte-americano, distinguiu-se como autor do conceito do “fim da História”, desenvolvido em «O Fim da História e o Último Homem» obra que muito influenciou grande parte da actual corrente neoliberal.
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