quinta-feira, 21 de outubro de 2010

EFABULAÇÕES E TABUS


Depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter, perante as câmaras da TVI, anunciado no passado domingo a data em que Cavaco Silva iria desfazer o tabu sobre a sua recandidatura presidencial,compreende-se cada vez mais que os seus eternos partidários se desdobrem em iniciativas e em mensagens ao eleitorado. Ora entre os mais fiéis dos fiéis (talvez membro do círculo interno cavaquista de tanto mérito quanto o de Marcelo Rebelo de Sousa ou até maior, pois tem resistido melhor à vã cobiça de ser o arauto do rei) conta-se um que, muito recentemente, tentou através da rescrita de uma fábula manter viva a aura do chefe.


É normal que em tempos conturbados se verifique a tendência para o aumento de alguma fantasia, pois a imaginação humana ainda continua a ser uma importante fonte de conforto e de esperança.

Inserem-se neste raciocínio importantes tentativas de explicar a ruína que nos rodeia e até alguns trabalhos que têm sido publicados e nos quais os autores, relativizando os problemas, vão tentando instalar notas fundamentais de esperança. Isso mesmo terá norteado o bem humorado (e optimista nato) Leopoldo Abadia a escrever «A Crise Ninja», onde entre diálogos de café e parábolas com acontecimentos diários e comezinhos procura explicar como chegámos aos actual estado das coisas e o que poderemos fazer para o ultrapassarmos. 

É evidente que a liberdade criativa empurra muitas vezes os autores para a efabulação e até para alguma distorção da realidade, mas essa liberdade criativa deve ser usada com a conveniente ponderação quando a obra se pretende uma reflexão sobre o real.

Vem isto a propósito não do livro de Leopoldo Abadia mas duma recente crónica onde o autor (César das Neves) procura descrever o desenrolar de acontecimentos ainda recentes como se de uma fábula se tratasse; sucede que enquanto cultivador do estilo que deu fama a La Fontaine, o nosso contemporâneo queda-se a uma distância bem superior à que o separa do Sol, pois enquanto a fábula tradicional consiste num conto onde os personagens centrais são animais e através do qual se procuram transmitir ensinamentos de carácter moral, a versão cesariana da fábula da carochinha poderá, quanto muito, alertar-nos para os cuidados na escolha do funileiro para reparar o caldeirão, nunca para a ganância ou a cupidez dos candidatos a casar com a carochinha.

Assemelhar a sucessão de personalidades que governaram o país nos últimos 25 anos (Cavaco, Guterres, Durão Barroso, Santa Lopes e Sócrates) a animais como um leão, um pato, um coelho, um galo e um rato diz muito sobre o autor e os seus reais objectivos; se até se pode compreender que o burro (um dos personagens originais da versão de La Fontaine) tenha sido agora excluído, para evitar qualquer leitura deturpada ou até a mínima confusão com o Partido Democrático norte-americano (cujo animal icónico é precisamente o burro), já a inclusão de um leão (animal que no universo das fábulas é associado ao conceito de força) e a sua metamorfização em Cavaco Silva diz muito (demasiado até...) das inconfessas intenções do autor.

Não só a escolha dos animais candidatos a consortes da carochinha revela uma particular tendência para valorizar as figuras ligadas ao PSD e, em simultâneo, apoucar as do PS, como evidencia claros sinais do famigerado culto da personalidade do chefe, quando associa a figura do leão a Cavaco Silva e para Durão Barroso e Santana Lopes se contenta com figuras secundárias e quase inócuas como um coelho ou um galo.

Mas este nem sequer é o maior encómio que César das Neves faz a Cavaco Silva; o maior é quando ao afirmar que a «...dívida externa da carochinha, que era de 8% do PIB quando o pato [Guterres] chegou...» branqueia de forma despudorada o efeito que teve o início dos grandes investimentos em betão, os quais datam precisamente do período que coincide com a passagem de Cavaco por S. Bento, e a política das “obras de regime”. É que se César das Neves já esqueceu a faraónica construção de um edifício para a recepção aos chefes de estado da CEE (que perdura hoje como o Centro Cultural de Belém), muita gente ainda se recorda.

E não foi apenas a febre de construção de auto-estradas (das quais o famigerado IP5 que um par de anos volvido teve que ser quase integralmente reconstruído e com custos muito acrescidos) o pior legado de Cavaco Silva, mas sim a insidiosa infiltração nos meandros do poder (PSD e PS) de uma mentalidade de facilitismo e de fachada que não tem parado de corroer os partidos do poder e, por extensão, o conjunto da sociedade portuguesa.

Mas para retomar o tema da fábula que deu origem a este texto e porque este estilo literário pressupõe que termine com uma lição de moral, facto que César das Neves resume à mera “gulodice” dos consortes menores da Carochina (o leão está obviamente acima de qualquer suspeita), sempre chamo a atenção para o que o desenrolar da fábula agora rescrita parecia apontar: o buraco do caldeirão.

É que vendo bem, o “erro” de todos os consortes da infeliz Carochinha (e a moral que proponho para a fábula) terá sido o de confrontados com o “buraco” nunca terem revelado a inteligência para, recordando o antigo ditado que recomenda não vá o sapateiro além do chinelo, chamarem um competente funileiro, contentando-se com os conselheiros que, no afã de manterem a sua situação de bem.aventurança com o poder, recomendam que, de uma forma ou outra, se continue a encher o caldeirão.

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