sábado, 26 de fevereiro de 2011

CRUDELÍSSIMO


A par com as notícias sobre o desenvolvimento da contestação ao líder líbio, Muammar Khadafi, os meios de comunicação começaram a encher-se de notícias ligando aqueles acontecimentos à subida do preço do petróleo.

Títulos como: «Petróleo aproxima-se dos 120 dólares devido à instabilidade na Líbia» ou. «Instabilidade na Líbia mantém barril de Brent acima dos 100 dólares» poderiam até servir de explicação para o que assegura que «Combustíveis: crude em novos máximos poderá levar a preços mais elevados nas bombas», como se tal fenómeno constituísse uma verdadeira novidade entre nós. Duma forma ou doutra todas as notícias estabelecem uma estreita ligação entre os dois fenómenos a ponto duma assegurar mesmo que «Corte de fornecimento de petróleo líbio poderá afectar Europa durante pelo menos um mês»; fazendo-se eco da opinião do presidente da consultora em energia WTRG Economics que cita, dizendo que o «...risco de interrupção do fornecimento de petróleo e gás natural da Líbia para a Europa está aumentado. Apesar de haver suficiente capacidade extra para compensar as exportações líbias, se uma guerra civil levar ao corte do fornecimento da Líbia, haverá um atraso na chegada de petróleo à Europa...» e sem esquecer que o «...verdadeiro problema é o contágio. (...) A maioria dos restantes membros da OPEP partilham características semelhantes. Têm líderes autocráticos e grande parte da população tem menos de 25 anos, registando-se taxas de desemprego bastante elevadas...», embora nenhuma estabeleça de forma clara o verdadeiro cerne da questão e ainda menos aquela que deverá ser a sua real dimensão.

Sendo facto inegável que a Europa depende muito (em demasia) do petróleo líbio, não é menos verdade que este país representa no conjunto da OPEP pouco mais de 5% das suas exportações, como se pode ver pelo quadro seguinte:
ora parece-me estranho que nenhum especialista, nem nenhum jornalista tenha formulado a questão de saber se a subida do preço internacional, na dimensão registada, fará sentido num mercado dito aberto onde a redução das vendas de um parceiro com relativamente pouco peso tenderá a ser de pronto aproveitada por outro, ávido de vender e de aumentar os seus ganhos.[1]

O argumento do aumento do risco derivado de um possível contágio a outros produtores da região, embora válido, também merece ser encarado com a devida cautela, pois aquele que é de longe o maior produtor, a Arábia Saudita, tem até agora conseguido manter-se um pouco afastada do clima de contestação.

Não quero com isto dizer que nada irá acontecer no resto do Médio Oriente, ou até que tudo devemos fazer para que nada aconteça em benefício da estabilidade das nossas fontes de petróleo – aliás esta estratégia foi a que, aplicada há décadas pelo Ocidente, levou agora que ao deflagrarem movimentos de contestação contra as reduzidas condições de vida, estes se tenham convertido rapidamente em oposição aberta aos poderes (autocráticos) instalados –, mas sim que ninguém analisa, comenta ou noticia os fenómenos de volatilidade dos mercados (neste caso dum produto tão importante como o crude) com a devida ponderação ou capacidade crítica.


Perante um tipo de trabalho jornalístico que repete cegamente o que ouve ou lê, sem o mínimo de espírito crítico ou até de simples capacidade para formular dúvidas sustentadas numa simples apreciação da realidade, quase se é obrigado a perguntar quem lucra com ele? O leitor, que de parcamente informado passa a completamente ludibriado?, os especuladores, que de pronto vêem ampliadas as hipóteses de ganhos?, os analistas e as empresas de corretagem, que por via do aumento do preçoo e do número de compradores e vendedores verão aumentadas as suas comissões e os seus lucros?, as petrolíferas, que farão seguro e bom uso dos “stocks” adquiridos a preços mais baixos para aumentarem ainda mais os seus lucros com a expectável (e anunciada) subida de preços?

Conclusão cruel, crudelíssima mesmo, é a de que as notícias – mais ou menos reais ou mais ou menos fictícias – em torno da questão da subida do preço do crude acabam por funcionar no Ocidente como argumento a favor da substituição dos actuais autocratas por novas figuras que em tudo (e principalmente na manutenção dos interesses ocidentais instalados) os repliquem.


[1] Isso mesmo consta numa peça da agência noticiosa AFP (que pode ser lida aqui) e donde destaco o seguinte:
«O petróleo líbio, que representa menos de 2% do abastecimento mundial, pode ser substituído pelo do Mar do Norte ou de outros países do oeste africano, que produzem a commodity de qualidade semelhante.
Além disso, a Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep) pode aumentar sua produção em 5 mbd se achar necessário.
No entanto, se o equilíbrio da oferta e da demanda precisar ser garantido, provavelmente será às custas de um forte aumento dos preços

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