domingo, 23 de maio de 2010

ENREDADOS

A avaliar pelas notícias que dão conta de que as economias mais desenvolvidas continuam mergulhadas em grandes dificuldades, como sejam a persistência das altas taxas de desemprego, a dificuldade sentida no crescimento do ritmo e da dimensão das trocas internacionais, o fraco crescimento do investimento e os baixos níveis de confiança de empresários e trabalhadores, a que se acrescenta o sobe e desce diário das bolsas de valores, alimentadas, é certo, por aquelas notícias mas principalmente pela imensa desinformação e contra informação com que diariamente jornais, rádios e televisões nos bombardeiam, as decisões dos dirigentes políticos traduzem cada vez mais a sua própria incapacidade para lidarem com a situação.

Veja-se o que sucedeu com o anúncio dos grandes dirigentes europeus (Merkel e Sarkozy) de que a UE iria apoiar financeiramente uma Grécia colocada à beira do colapso; após uns primeiros sinais de normalização das taxas de juro e de câmbio do euro, eis que tudo voltou à situação anterior, fenómeno rapidamente explicado pelos analistas pelo facto dos “mercados” não acreditarem que as medidas tomadas seriam suficientes para resolver o problema grego e ainda menos os da UE e da sua moeda.

Empurrados (ou não) pela pressão dos “mercados”, os dirigentes europeus decidiram que o prioritário era eliminar rapidamente a situação deficitária das respectivas contas públicas e assim assistimos à profusão de medidas visando esse objectivo; variando ora entre as orientadas para a redução da despesa ou para o aumento das receitas, ora combinando as duas. O pior é que neste capítulo, como em tantos outros, voltámos a assistir à mais completa desorganização e descoordenação entre os Estados-membros; por exemplo, enquanto o governo da nossa vizinha Espanha decidiu optar por privilegiar a redução da despesa (anunciando um corte de 5% nos salários da função pública e de 15% para os cargos políticos) em Portugal a opção foi a habitual subida dos impostos (aumento de 1 e 1,5% do IRS e de 1% do IVA, medida tão espantosa quanto ainda há pouco tempo o IVA fora reduzido devido à prejudicial diferença que registava para a economia fronteiriça) acompanhada de uma tímida (e que seguramente será prontamente esquecida) referência à necessidade de conter a despesa, declaração que não passa das habituais intenções de reforço da regra de equilíbrio orçamental nos serviços e fundos autónomos e da redução e cativação das dotações relativas a consumos intermédios (convenientemente defendida pelo líder da oposição e que, se e quando atingir o Governo irá prontamente esquecer)[1].

Os exemplos referidos, a par com o discurso de Angela Merkel (prontamente scundado por Sarkozy) defendendo a intenção de virem a ser fixados, constitucionalmente, valores máximos para o endividamento público dos estados-membros, são bem o espelho da desorganização e da total falta de capacidade de avaliação dos problemas, de definição de objectivos claros e de elaboração das estratégias adequadas para os combater.


Não raras são as análises elaboradas por políticos e especialistas que apontam de forma correcta e adequada os problemas mas que invariavelmente falham rotundamente nas soluções propostas e isto acontece por uma de duas razões principais: pura subordinação aos modelos neoliberais que conduziram as economias ao colapso actual ou, pior, mera incapacidade para entenderem a realidade além do que lhes terão ensinado nos bancos das escolas.


De uma forma ou outra continuamos dependentes daqueles que nos conduziram ao ponto do precipício onde nos encontramos e continuamos a ouvir os pretensos “condutores” a afirmar que a solução é mais do mesmo – no caso concreto das dificuldades financeiras dos países da Zona Euro, originadas no desequilíbrio das contas nacionais de cada um dos estados-membros que foram fortemente agravadas pelas práticas predatórias do sector financeiro que esses mesmos estados salvaram no auge da crise de liquidez a custo do aumento do endividamento público – e que tudo será feito para que o sector financeiro mantenha intactas as suas prerrogativas, os seus ganhos e a maximização dos futuros.


Perante o óbvio descalabro de um modelo económico onde a grande percentagem do crescimento registado se fica a dever a meras manobras especulativas (de que a permanente volatilidade das bolsas de valores é apenas a ponta visível) dificilmente alguém de bom senso poderá aceitar que a solução não passe pela substancial redução (ou até a pura e simples eliminação) dos mecanismos e das facilidades que o possibilitaram. À cabeça destas conta-se o facto dos estados terem abdicado da função de criação de moeda em favor dos bancos (num processo de ruinosa privatização de um bem público e indispensável à realização e à condução da política monetária), de se ter liberalizado o funcionamento os mercados financeiros, ao ponto destes quase não serem sujeitos ao escrutínio público (aqui não se trata apenas de questões ligadas ao sigilo das operações mas de questões ligadas à manipulação das cotações e dos mercado e inclusive à prática de operações de “short selling
[2]) e à criação dos “offshores” ou paraísos fiscais, que mascarados de importante centros de negócios e factores e dinamização económica constituem na realidade verdadeiros centros de operações criminosas que vão desde a lavagem de dinheiros de negócios ilícitos (resultado de subornos e outras “comissões” de intermediação, vendas de armas e de narcotráfico) até à mais despudorada fuga fiscal.


E não se creia que isto é mera figura de estilo ou exagero para atingir o efeito pretendido, pois se o cristianíssimo banco do Vaticano
[3], sedeado no paraíso fiscal que é aquele estado pontifício, não se coibiu de contribuir nos anos 80 do século passado para a falência do Banco Ambrosiano[4], voltou mais recentemente, fruto da operação “Mãos Limpas”[5], a ver-se envolvido na acusação da lavagem dos subornos no caso Enimont[6].
Ainda recentemente, na edição de 13 de Maio da revista
VISÃO, numa entrevista ao jornalista italiano Curzio Maltese, autor do livro «La Questua»[7] onde expõe o trabalho de investigação que efectuou sobre os custos da Igreja Católica para os italianos (trabalho inicialmente publicado no jornal La Repubblica), este afirmou relativamente ao IOR: «É um banco obscuro, ligado a episódios terríveis da vida italiana, relacionados com a Máfia, as bancarrotas, enfim… Nunca foi investigado. Quando o arcebispo Marcinkus foi acusado de provocar o crack do Banco Ambrosiano, o passaporte do Vaticano impediu a sua prisão. É como se essa entidade financeira estivasse nas ilhas Caimão…». A mesma linha de secretismo é igualmente mencionada na Introdução que Gianluigi Nuzzi (outro jornalista de investigação italiano) escreveu para o seu livro «Vaticano S.A.» [8], que: «…por detrás das paredes do Vaticano é o silêncio que impera sempre que as operações dos banqueiros do papa, arcebispos ou purpurados, fazendo uso do dinheiro dos fiéis, se tornam arrojadas, ou até ilegais. O IOR continua a ser um dos lugares mais inacessíveis e é a custo que o Vaticano admite a sua existência. Nas páginas oficiais da Santa Sé não se fala nisso, nem sequer é feita qualquer referência. É como se as finanças do Vaticano não existissem».


Conhecida esta realidade e se esta é a prática e a ética de um banco da Igreja imagine-se o que sucederá noutros… enquanto os políticos mundiais, enredando-nos numa teia de ineficácia, corrupção e compadrios, persistem em nos querer fazer crer que será com débeis e tímidas medidas (como as pomposamente anunciadas pela administração Obama[9] ou a pretensão da chanceler alemã de vir a controlar os mercados de capitais[10], que não serão mais que elos da estratégia de parecer mudar um pouco para que tudo continue na mesma) que o problema se resolverá.
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[1] Não esqueçamos que historicamente os maiores défices públicos têm-se registado durante a vigência de governos do PSD e que na actual conjuntura política nacional será da maior utilidade que este partido capitalize o maior número possível de descontentes por forma a garantir que seja esta formação política a assegurar a constituição do próximo governo e assim se mantenha a tão conveniente alternância entre PS e PSD. No fundo tudo não passará de mais uma manobra de bastidores para assegurar que no próximo ciclo eleitoral tudo possa parecer mudar sem que nada de essencial verdadeiramente mude.
[2] O “short selling” ou venda a descoberto, consiste na venda de títulos de crédito (acções, obrigações ou outros) sem que o vendedor os detenha efectivamente na sua carteira. Na prática este constitui uma forma de possível manipulação dos mercados, pois o vendedor a descoberto pode despoletar um processo de desvalorização dos títulos que irá comprar mais tarde a um preço inferior àquele pelo qual os vendeu.
[3] Também conhecido pela designação de Istituto per le Opere di Religione (ou pela sigla IOR) é um banco privado fundado pelo Papa Pio XII em 1942 e tem sede na cidade do Vaticano. Embora na nomenclatura do Vaticano se refute a ideia de que aquele instituto é o Banco do Vaticano, é sob designação (e função) que tem ficado conhecido.
[4] O Banco Ambrosiano, fundado nos finais do século XIX com a assumida finalidade de ser um banco católico, foi um dos principais bancos privados italianos. A sua ruína começou quando o seu principal responsável, Roberto Calvi, foi envolvido no escândalo da loja maçónica P2 (Propaganda-2) e foram descobertas profundas ligações com o Banco do Vaticano e com operações ilegais. Deste escândalo resultaria o afastamento do todo-poderoso arcebispo Paul Marcinkus, o chefe do Banco do Vaticano.
[5] “Mãos Limpas” (Mani pulite em italiano) foi um processo de investigação judicial de envergadura nacional, realizado nos anos 90 do século passado, que teve como objectivo acabar com a corrupção política. A operação resultou no fim da chamada Primeira República e na extinção de muitos dos partidos então existentes ao expor as relações entre políticos e industriais e a existência de enraizado sistema de subornos. Além de algumas condenações em tribunal resultaram ainda o suicídio de algumas das figuras envolvidas.
[6] A Enimont foi uma empresa resultante da fusão de interesses de dois dos gigantes industriais italianos, a empresa pública ENI (petrolífera) e a MONTEDISON (grupo industrial, química, e financeiro), mas que teve uma curta duração face às lutas internas pelo controlo da maioria do seu capital e que por via dos muitos subornos pagos a partidos políticos, durante todo o processo da constituição e da dissolução, arrastou consigo o prestígio da Primeira República Italiana.
[7] Desconheço a existência de tradução para a obra de Curzio Maltese, mas a versão original de «La Questua» pode ser facilmente encomendado na Internet.
[8] A obra de Gianluigi Nuzzi, «Vaticano S.A.» tem tradução recentemente editada pela Editorial Presença.
[9] A título de exemplo veja-se esta notícia do PUBLICO.
[10] Veja-se a notícia do DIÁRIO DIGITAL que refere o apelo de Angela Merkel nesse sentido.

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