quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O COLAPSO DE WALL STREET (parte III)

Como se não fosse suficiente a catastrófica situação das principais empresas financeiras do mercado norte-americano, o Congresso ainda decidiu contrariar as expectativas que apontavam para a aprovação do plano Paulson (a alocação de 700 mil milhões de dólares para socorrer aquelas empresas) e rejeitar a proposta.

Como era óbvio, a situação já delicada que se vivia em Wall Sreet, agravou-se ainda mais com a generalidade dos índices bolsistas a caírem, em reacção àquela decisão.

Mas será que se ele tivesse sido aprovado poderíamos ficar tranquilos com a aplicação do grande plano de salvação proposto por Henry Paulson e Ben Bernanke?

A resposta a esta questão depende muito da forma como cada observador entender a crise que se desenrola. Para os que ainda acreditarem nas virtualidades de uma economia baseada principalmente na sobrevalorização dos fluxos financeiros e no primado do mercado (em especial no do mercado de capitais) os milhões de dólares prometidos para sanear o balanço dos bancos norte-americanos serão um sinal positivo que deverá catapultar a recuperação dos principais índices bolsistas, expressando a demonstração da recuperação da confiança dos investidores.

Para quem queira, ou consiga, ver além das aparências que são os mercados de capitais e observe a economia real, não pode deixar de constatar que além dos milhões prometidos não passarem de uma pequena parte do montante necessário, estes destinam-se principalmente a salvar a face (e o negócio) dos banqueiros, não representando significativa influência naquela economia onde todos vivemos o dia-a-dia.

Pior, a bóia de salvação que representaria o plano Paulson não vai sequer servir para corrigir os erros que conduziram ao actual estado das coisas, e a confirmá-lo temos o clima de generalizada euforia bolsista que de imediato se registou ao simples anúncio da ideia e que, da mesma forma que então reagiu exageradamente também agora com o fez (no sentido da baixa) com o anúncio da recusa.

Este insucesso político deverá ser corrigido em breve com a apresentação de nova proposta ao Congresso, e ainda que o plano inicial desenvolvido em três singelas páginas se tenha convertido quando apresentado àquele órgão de poder num in-folio de 106 páginas[1], revista e corrigida, porque a pressão de Wall Street sobre a Casa Branca não deverá abrandar e esta, ainda, é uma importante fonte de financiamento para Democratas e Republicanos.

Se o futuro me parece pouco incerto – acabará por haver “pacote de socorro” – já os princípios que norteiam esta iniciativa devem merecer melhor apreciação.

Mesmo sem recorrer aos mais profundos cânones neoliberais - os do primado do mercado e da livre iniciativa e que as nacionalizações já realizadas pela administração Bush contrariam de forma absoluta – a ideia do Tesouro norte-americano adquirir as dívidas incobráveis que deterioram os balanços dos bancos e assim lhes conferir a solidez financeira que as arriscadas políticas de investimento e de financiamento que praticaram lhes retirou, não pode deixar de ser criticada (e tem-no sido) por quem analise friamente a situação.

Injectar milhares de milhões de dólares provenientes dos impostos cobrados aos contribuintes a quem tem sido sistematicamente negada a melhoria de cuidados de saúde e de educação (sob o argumento de que o Estado não dispunha de verbas para tal) é, no mínimo, uma opção altamente contestável.

Recorrer ao argumento de aquele gasto é indispensável para que os efeitos negativos das falências dos bancos e da quebra de confiança dos cidadãos não alastre ao resto da economia, é tão falaciosa como a anterior, na medida em que o dinheiro injectado nos balanços dos bancos não terá outro efeito que não o de obviar a consequência natural dos maus investimentos e das ruinosas estratégias de especulação que administradores e gestores bancários praticaram – a falência – e servirá, em última instância para remunerar os accionistas dos bancos, mas não recuperará empregos destruídos pelas políticas de deslocalização para países com salários mais baixos nem se traduzirá em novos investimentos em sectores economicamente produtivos e geradores de riqueza para o conjunto da economia norte-americana.

Ninguém, entre os defensores do plano, refere que a probabilidade da iniciativa acarretar para os contribuintes um duplo prejuízo, pois aos milhares de milhões já anunciados haverá que acrescer muitos outros[2] para efectivamente sanear a situação e ainda os que vierem a se necessários para compensar os prejuízos resultantes do Tesouro nunca revender os activos por falta de compradores interessados, é elevada e no pior dos cenários (mas a que a história recente e próxima confere grande probabilidade) o esforço colectivo acabará por beneficiar apenas uma minoria e, pior, a minoria grandemente responsável pela crise.

Por último, a canalização de recursos financeiros, para os quais o estado norte-americano terá de se endividar e por esta via contribuir para a desvalorização da sua moeda e para o agravamento do seu já enorme deficit público[3], para um sector da economia que longe de contribuir para o crescimento da riqueza nacional tem servido para o enriquecimento de um diminuto segmento da sua população, com os prejuízos agora bem evidentes, e num período particularmente conturbado da sua economia apenas poderá resultar num aprofundamento da recessão que na realidade a economia americana já atravessa[4] e que pela dimensão do seu mercado não poderá deixar de se traduzir na retracção das principais economias mundiais.

Isto dito, não significa que ao poder político não esteja reservado um papel importante no combate à crise, que não venha a se necessário recorrer a fundos públicos ou até à emissão de mais dívida pública; o que se deverá exigir dos responsáveis políticos, norte-americanos ou outros, é que os fundos públicos que venham a se usados sejam utilizados para minorar os efeitos negativos da crise financeira sobre a economia real – usando, por exemplo, os fundos para minimizar junto de clientes e fornecedores do sistema bancário e segurador os efeitos das falências que tenham que se registar – mas nunca para compensar o prejuízos dos que alinharam num “jogo” de alavancagem financeira que conduziram até patamares insustentáveis.

Os prejuízos que inventores e praticantes da reengenharia financeira[5] já originaram na economia real, dos quais o excessivo endividamento das famílias é apenas uma parte, mais que justificam que, num bem estruturado e correctamente orientado plano de recuperação da economia, se inclua uma vertente particularmente orientada para o apoio às famílias e ao mercado imobiliário[6], a par com a definição de novas regras de funcionamento dos mercados de capitais.

Tal como a prática já demonstrou o logro que constitui a implementação de políticas económicas e fiscais orientadas para promover e facilitar a concentração da riqueza nas mãos dos mais ricos – na expectativa de que os investimentos por estes realizados se viessem a reflectir em maiores rendimentos do conjunto da sociedade –, também a ideia da promoção da desregulamentação dos mercados como algo de indispensável e benéfico para todos acaba de ser desmistificado, pelo que a par com a intervenção sobre a economia é igualmente indispensável a introdução de regulamentação eficaz sobre os mercados de capitais.

Talvez em poucas ocasiões, como nesta, esteja a ser tão evidente a velha expressão latina: homo homini lupus
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[1] Curiosidade que retirei desta notícia do DIÁRIO ECONÓMICO e é reveladora de duas coisas: a fraquíssima qualidade da fundamentação inicial e das muitas alterações e adendas que a proposta sofreu durante as negociações entre a Casa Branca e os representantes Democratas e Republicanos no Congresso.
[2] Pelo menos essa é a expectativa de alguns analistas, conhecedores do sector financeiro, como refere esta notícia do BLOOMBERG e que o DIÁRIO ECONÓMICO também referiu.
[3] Num artigo muito a propósito intitulado «A economia dos EUA está doente», datado de Abril deste ano, Joseph Stiglitz afirmava que a dívida pública norte-americana «…aumentou 50% em oito anos, sendo que 1 bilião se deve ao esforço de guerra – valor que deverá mais do que duplicar na próxima década» e segundo o WORLD FACTBOOK a dívida pública representará cerca de 37% do PIB do país; como aquele indicador foi estimado em 14 biliões de dólares, para 2007, pode-se concluir que o valor daquela dívida deverá ser da ordem dos 5 biliões de dólares.
[4] A atestar por esta notícia do LE MONDE, que desde Maio deste ano que se discute abertamente se a economia norte-americana está ou não em recessão, enquanto Walter Williams, na sua página SHADOW GOVERNMENT STATISTICS, informava em 13 de Janeiro que a recessão se tinha instalado.
[5] Expressão que habitualmente designa o processo de elaboração dos diversos produtos financeiros e da sua combinação em diferentes produtos finais.
[6] Isto mesmo foi hoje lembrado num artigo de George Soros publicado no FINANTIAL TIMES.

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