domingo, 25 de maio de 2008

BOICOTES

Não há jornal económico que nas últimas edições não chame à primeira página a questão do preço do petróleo (seja na perspectiva dos preços da matéria-prima ou dos produtos refinados, seja na das iniciativas governamentais para a redução da dependência energética), mas a mais curiosa de todas é a do SEMANÁRIO ECONÓMICO que faz eco de um apelo ao boicote que circula pela Internet e por SMS.

Este semanário e o DIÁRIO ECONÓMICO dão particular ênfase à questão, em notícias rigorosamente iguais (desde o título até ao desenvolvimento)[1], ou não partilhassem as duas publicações a mesma propriedade[2] e não fossem as peças assinadas pela mesma jornalista, assinalando não só os elevados prejuízos que dele resultariam para a GALP mas recordando também que esta não constituiu uma iniciativa inédita, pois já em 2000 se registou u ma actuação idêntica na Espanha e em França.

Muito mais curioso é o facto de na mesma edição o editorial do SEMANÁRIO ECONÓMICO, da autoria da sua directora Inês Serra Lopes, versar sobre o mesmo tema, abordando-o numa perspectiva um pouco diferente. Enquanto a manchete e a peça da jornalista Lígia Simões se fica pela apresentação de alguns comentários de responsáveis pelo sector da refinação e da revenda de combustíveis, destacando-se o facto daqueles considerarem que existem razões estruturais que justifiquem o actual nível dos preços do “crude”, a de Inês Serra Lopes aponta razões de natureza económico-social para o apelo ao boicote e termina lembrando as implicações políticas que poderão resultar de semelhante iniciativa.

Conhecida de há muito a temperança dos portugueses, poderá parecer estranha a proposta de boicote, mas a mim parece-me bem mais estranha esta súbita preocupação da imprensa e ainda mais o número de “explicações” que está a originar, tanto mais que num editorial do DIÁRIO ECONÓMICO, André Macedo vem defender a cada vez mais desgastada fórmula “mais mercado e mais concorrência” para resolver o aumento dos preços, enquanto apela, beatificamente, à actuação da Autoridade da Concorrência para assegurar o livre funcionamento de seu sacrossanto mercado.

Embora ridículo no geral, há um ponto no qual o autor tem toda a razão - «[b]aixar o ISP seria uma solução desejável, mas é irrealista nos actuais dias de incerteza: o Governo não dividirá uma parte dos 2,8 mil milhões de receitas que conta receber este ano. Também seria uma monstruosidade intervir e condicionar o preço. A prazo, a consequência seria brutal e iríamos todos – com ou sem carro – pagar a factura» - mas relativamente ao qual não desenvolve qualquer argumentação que fundamente a intransigente defesa do mercado. Pior, os argumentos de natureza orçamental e normativa que invoca (conjuntamente com o facto dos governos terem perdido capacidade de controlo sobre a política monetária, oportunamente referido no já citado editorial de Inês Serra Lopes) deveriam conduzir a uma outra linha de raciocínio: a actuação governativa deveria passar cada vez mais pela acção directa sobre sectores chave da economia.
A fundamentar esta asserção veja-se a recente decisão do governo de José Sócrates de não aplicar os termos de revisão dos preços dos transportes públicos, pedidos pelos industriais do sector, numa clara violação das regras em vigor.

Sendo óbvio que o aumento dos passes sociais constituiria mais uma acha para a fogueira da indignação geral, o governo preferiu suportar as críticas dos industriais dos transportes rodoviários (até porque ainda é proprietário de duas das principais empresas de transportes públicos, a CARRIS e a CP) na expectativa de aplacar um pouco a ira geral. Porém, não revela o mesmo tipo de preocupação na actuação da GALP, seja porque ainda detém parte do capital da empresa[3], seja por se considerar incapaz de enfrentar os interesses dos principais accionistas: a ENI e o Grupo Amorim.

Aliás a actuação dos interesses instalados na indústria petrolífera tem constituído matéria para diversas e reiteradas questões, mesmo em países como os EUA, no qual numa recente audição no Congresso[4] os patrões da indústria petrolífera foram lestos a culpabilizar o desfasamento entre a oferta e a procura de petróleo, a defender a necessidade de reabertura de vastas áreas do território americano à exploração petrolífera e a redução da apertada regulamentação sobre a indústria da refinação.

Enquanto de fora continuam a chegar notícias que dão conta que o mercado petrolífero está ”louco”, reproduzindo mesmo declarações do secretário-geral da OPEP que assegura que «[s]e aumentássemos a produção amanhã, os preços não baixariam, devido à especulação e ao dólar fraco», internamente discute-se o que fazer perante este cenário de evidente agravamento generalizado de preços, havendo mesmo quem, como Pedro Santos Guerreiro no JORNAL DE NEGÓCIOS, defenda que «[s]ó há uma medida directa que o Estado pode tomar que não distorce a economia: baixar o imposto sobre os produtos petrolíferos e monitorizar se essa descida não é apropriada pelas gasolineiras. De resto, só medidas indirectas (como apoios a empresas transportadoras ou incentivo a transportes públicos) fazem mais bem do que mal».

Entre tantas e tão contraditórias opiniões que os jornais vão difundindo, parece-me especialmente adequado proceder a alguma sistematização das mesmas.

Assim, para os países produtores de petróleo a subida do preço do “crude” está particularmente associada à especulação e à desvalorização do dólar, enquanto para a indústria petrolífera o problema centra-se num desajustamento entre a oferta e a procura, com esta última a crescer por impulso de países como a China e a Índia. Como é natural ambas as perspectivas apresentam algum fundo de verdade, embora a OPEP procure também disfarçar a sua própria incapacidade para aumentar a produção (seja por inadequação tecnológica e falta de investimentos atempados, seja por a indústria petrolífera já ter ultrapassado o pico de produção[5]) não é menos inegável que a crescente industrialização ditada pela política de deslocalização da produção industrial para a Ásia está a repercutir-se num aumento da procura de petróleo por esses países.

Como procurei explicar quando chamei especial atenção ao que se lê nos jornais, não deve subsistir qualquer dúvida de que a pressão especulativa é uma das grandes responsáveis pela subida descontrolada do preço do “crude”, mas a contínua instabilidade política e militar que é artificialmente mantida numa região de produção petrolífera tão sensível como o Médio Oriente não pode ser esquecida em toda esta situação.

No conjunto, tudo isto representa um “cocktail” fatal para os rendimentos das famílias; cada vez mais depauperadas pelo constante aumento dos bens de primeira necessidade, em consequência das políticas de desenvolvimento económico de cariz neo-liberal que continuam a retirar aos estados capacidade de intervenção e de influência na economia, sentindo dispor de limitadas capacidades de influência no processo de decisão político-económico, aos cidadãos talvez pouco mais reste que o dever da indignação e o recurso à contestação, sendo que a proposta de boicote ao abastecimento de combustíveis nos postos das marcas líderes de mercado poderá constituir uma boa opção.

Aguardemos pelos efeitos…
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[1] Para eliminar qualquer dúvida vejam-se os seguintes endereços:
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http://www.semanarioeconomico.com/empresas/empresas_desarrollo.html
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http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/nacional/empresas/pt/desarrollo/1126730.html
[2] Ambas as publicações são propriedade da S.T. & S. F., Sociedade de Publicações Lda.
[3] De acordo com o quadro da Estrutura Accionista (consultável neste endereço: http://press.galpenergia.com/galpmedia/vpt/galpenergia/ogrupo/estruturaaccionista/) o Estado português detém mais de 8% do capital (7% através da PARPUBLICA e 1% através da CGD), constituindo o terceiro maior accionista da empresa.
[4] Ver notícia da CNN.
[5] Esta teoria do Pico Petrolífero (Oil Peak), também conhecido como Curva de Hubbert ou Pico de Hubbert, foi apresentada pela primeira vez em meados do século XX e previa que a partir da década de 70 a produção petrolífera entrasse em regressão. Foi o seu autor o geólogo Marion King Hubbert, que defende o princípio do inevitável declínio e fim da produção de petróleo; de acordo com a teoria, aplicável a um poço ou a todo o planeta, a taxa de produção tende a seguir uma curva normal, cujo comportamento se caracteriza por apresentar uma fase de crescimento e de regressão simetricamente distintas pelo período de apogeu ou pico. Na altura o pico foi estimado para a década de 1970 (data que se viria a confirmar para a produção originada nos EUA), enquanto actualmente se aponta para o período entre 2005 e 2025 para a produção mundial.
(Para mais informação consultar, por exemplo, este interessante artigo de David Room and Steve Tanner no seguinte endereço: http://www.thecuttingedgenews.com/index.php?article=476)

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