domingo, 2 de março de 2008

VÍCIOS PRIVADOS, PÚBLICAS VIRTUDES

Enquanto o dia-a-dia da esmagadora maioria dos cidadãos do nosso país continua a decorrer de forma penosa e arrastada; enquanto se sucedem as notícias que a conta gotas vão confirmando as piores perspectivas para a evolução da economia e para os cada vez mais precários rendimentos que vamos auferindo a troco de um esforço crescentemente maior; enquanto persistem os sinais de conflitualidade, real ou latente, um pouco por todo o lado; enquanto continuam por surgir sinais evidentes de que os nossos dirigentes, nacionais e comunitários, estão efectivamente empenhados na prossecução de políticas orientadas para a qualidade de vida das populações, parece-me merecedor de especial reflexão um artigo do DIÁRIO ECONÓMICO que li há dias e do qual aqui cito o seguinte excerto[1]:

«Fomos buscar à cultura anglo-saxónica a ideia de que os vícios privados (como a avidez, a ambição, e até mesmo a inveja) podem tornar-se públicas virtudes porque estimulam a competição económica e política. Mas isso apenas acontece em sociedades que possuem uma rigorosa ética privada e pública como as comunidades de New England.
[Num país], onde a ética pública é quase inexistente, os vícios privados tornam-se imediatamente vícios públicos, corrupção. Os males da nossa sociedade não se podem curar nem com simples alterações na maioria eleita nem com leis. A lei, por si só, nada é sem sólidas raízes éticas. [Em tempos], os magistrados tentaram substituir a moral pela lei, mas o resultado foi desastroso. Não, a base da sociedade é o indivíduo moralmente capaz de dizer não a quem lhe oferece dinheiro, sucesso e carreira em troca de favores. O nosso país precisa de uma reconstrução ética que apenas pode ser realizada se partirmos da infância e, no caso dos adultos, partindo das pequenas coisas. Não estacionar a mota no passeio, pagar o bilhete de autocarro, não prometer aquilo que não se pode cumprir, não favorecer os recomendados, não pagar sem recibos, pedir factura, declarar os rendimentos e denunciar as irregularidades que nos rodeiam. São comportamentos que deveriam ser essenciais, a começar pelos políticos, magistrados, intelectuais, jornalistas, empresários, comerciantes e depois todos os outros, porque a moral ensina-se através do exemplo.
Mas atenção, não estou aqui a fazer nenhum convite à austeridade, ao ascetismo. Nada disso! Divirtam-se, festejem, façam férias, façam amor, comam e bebam o que vos apetecer. Mas, quando estiverem a trabalhar, não finjam que trabalham. Se forem professores, ensinem com dedicação, se forem juízes, sejam imparciais, se foram administradores, não enganem ninguém. É evidente que os corruptos vão considerá-los estúpidos, mas temos de começar a comportar-nos de forma correcta, apenas por ser o que está certo. A virtude é um exemplo, é um modelo da forma como todos devemos agir. Não posso ser virtuoso apenas quando me dá jeito. Devo sê-lo sempre e de qualquer maneira. E o prazer que daí vou retirar será a consciência de estar a dar o exemplo, o prazer de me sentir livre, o orgulho de não ter cedido à chantagem
da autoria do sociólogo italiano Francesco Alberoni[2], escrito a propósito da situação em Itália (daí na citação ter substituído entre parêntesis as referências directas àquele país) queria destacar três ideias que me parecem de enorme aplicabilidade nacional:
1. necessidade de uma repensar os padrões éticos;
2. necessidade de um esforço colectivo e empenhado;
3. a mudança tem que começar no interior de cada um de nós;
que muita gente reconhece mas que, por um motivo ou outro, continuamos sem aplicar.
A matriz judaico-cristã donde deriva a nossa sociedade contém, desde a sua génese, um conjunto de normas que há milénios são transmitidas de geração em geração, mas que nos últimos anos têm sido profundamente subvertida pela actuação impune de algumas franjas da sociedade. É certo que desde tempos imemoriais sempre houve quem quebrasse essas regras, mas também é verdade que os que tal ousaram sempre se sujeitaram ao repúdio da sociedade, contrariamente ao que agora parece suceder quando se glorifica o sucesso a qualquer preço e mediante recurso a quaisquer meios.
Por tudo isto, não creio que seja indispensável a criação de uma nova ética mas sim a recuperação de valores que foram correntes e usuais até há bem pouco tempo.
Este processo terá que envolver um esforço colectivo e assumido no sentido da reinculcação de valores fundamentais como a honestidade, o dever, a honra, etc. e deverá apontar como alvo preferencial os jovens. Só melhorando as gerações mais novas é que poderemos aspirar a quebrar o actual ciclo de valores pantanosos em que vivemos, mas para tal é indispensável que pais, professores e a sociedade em geral alterem o comportamento complacente a coberto do qual se têm multiplicado os oportunistas.
É por isso com crescente preocupação que continuo a acompanhar a evolução das políticas educativas no nosso país e a total ausência de uma prática orientada para a valorização do esforço de alunos e professores, porque enquanto vigorar no sistema educativo português a sacrossanta preocupação das estatísticas e das médias avaliadoras do insucesso escolar tudo o que estaremos a fazer é transmitir os sinais errados na abordagem do problema. Se desde o início do processo de massificação do ensino, só possível após o 25 de Abril, tivéssemos definido como principal prioridade a aquisição pelos jovens de arreigados conhecimentos e sólidas competências em detrimento dos ilusórios resultados estatísticos fornecidos por indicadores como o sucesso escolar, disporíamos hoje de melhores profissionais, mas sobretudo de melhores cidadãos, mais despertos para as reais necessidades do país e dotados de sólidos valores, em vez da miríade que engrossa as listas de desempregados e procura desesperadamente um trabalho que lhe proporcione um mínimo de dignidade social.
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[1] O texto entre parêntesis e os sublinhados são de minha responsabilidade.
[2] Mais informação e outros artigos podem ser encontrados na sua página: http://www.alberoni.it enquanto os editoriais que regularmente escreve para o CORRIERE DELLA SERA podem ser lidos aqui: http://www.corriere.it/editoriali/alberoni/

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