domingo, 24 de fevereiro de 2008

UM CONCRETO MAL-ESTAR

Contrariamente ao que sugere a SEDES no seu documento de análise da situação nacional o mal-estar geral está longe de se dever considerar difuso. Ele é bem concreto e os seus autores sabem-no!
Uma leitura mais atenta do documento revela que embora este aponte fundamentalmente razões de natureza social – a degradação da confiança no sistema político e a crise de valores de justiça e igualdade – estas têm subjacente um modelo de distribuição de riqueza desajustado e injusto. Desajustado porque ao fomentar a concentração da riqueza na posse de um número cada vez menor de cidadãos não proporciona aos restantes o estímulo e as perspectivas de melhoria social e económica que recompense o esforço socialmente necessário ao desenvolvimento colectivo; injusto porque não distribuindo minimamente a riqueza socialmente produzida, condena os que menos oportunidades tiveram a disporem de cada vez menores recursos.


É a este fenómeno, devidamente transposto para o universo empresarial, que se referiu Abel Pinto[1], nas Jornadas de Teologia promovidas pelo Instituto de Estudos Teológicos de Coimbra que actualmente decorrem naquela cidade quando refere a existência duma «...cultura de gestão assente no medo, na subserviência ao chefe e numa postura acrítica ao que se passa na empresa».

Só a interiorização de um clima de medo[2] pode justificar que um país que viveu na última geração um acelerado processo de democratização da sua sociedade registe hoje estruturas salariais como as que há umas semanas a revista VISÃO apresentou, onde se constata que os administradores das grandes empresas públicas e privadas nacionais recebem salários médios muitas (demasiadas) vezes superiores aos salários médios dos trabalhadores.

Estes dados, publicados no número 775 daquela revista, são confirmados num artigo do DIÁRIO DE NOTÍCIAS, que citando um estudo do Eurostat conclui que em «...Portugal, os 20% mais ricos recebem 6,8 vezes mais do que os 20% mais pobres», desigualdade que não só é a mais elevada dos países da EU como se encontra longe do país que nos segue[3] nesta triste comparação.

Mas tanto ou mais grave que o não reconhecimento político desta realidade são algumas das explicações que aqui e ali vamos lendo e ouvindo sobre esta calamidade, como a que recentemente avança um editorial do DIÁRIO DE NOTÍCIAS em que se afirma que a «...grande explicação para o fosso social português é a subqualificação de boa parte da nossa população (...) temos cerca de 30% de pessoas com o secundário completo ou mais e 70% com instrução abaixo dessa fasquia. Na Europa, a regra é o inverso: 70% da população com o secundário completo ou mais e apenas 30% subqualificada», para concluir pomposamente que «só a qualificação elimina as desigualdades sociais... [pois] ...os mais qualificados, por serem mais escassos, são valorizados mais do que noutros países em termos relativos ».

O editorialista não se fica sequer por este raciocínio, vai mais longe e assegura que a desgraça que se abate sobre os trabalhadores com menores rendimentos resulta do mero funcionamento das leis do mercado, porque, «...sendo relativamente menos (do que os seus congéneres europeus), os mais bem qualificados ganham relativamente mais. E, em consequência, os rendimentos dos portugueses têm, entre os extremos sociais, um fosso maior do que nos restantes países europeus…» e assim, pela simples e crua aplicação das leis da oferta e da procura, entende explicado (e explicável) o gritante fosso entre rendimentos, esquecendo, ou esperando que nenhum leitor se lembre, que é precisamente entre o segmento dos jovens portugueses com maiores qualificações que se encontram as maiores taxas de desemprego.

Anacrónico? Antes, pelo contrário! O que esta aparente contradição pode demonstrar é outra das vertentes da origem do tal mal-estar a que alude o documento da SEDES, mas a que não dá “rosto” nem “nome”- é o da inépcia do tecido directivo nacional corporizado nos “patrões” de empresas subqualificados que, como via para a redução dos custos e melhoria dos lucros, preferem contratar trabalhadores mais baratos que são tanto ou menos qualificados que eles e os “directores” altamente qualificados que, sob a capa da defesa da redução dos custos e da maximização dos lucros dos accionistas, preferem não contratar trabalhadores cuja qualificação lhes possa fazer sombra.

O texto que consubstancia o alerta que agora deixou a SEDES, todo ele orientado para a dimensão política do problema, tem ainda o cuidado de concluir que a sua resolução tem que passar pelo quadro político partidário, mas não da forma como o fez num artigo de opinião no EXPRESSO e numa entrevista ao CORREIO DA MANHÃ o director do Observatório de Segurança, general Garcia Leandro, que parece mais orientado para uma reorganização daquele espaço do que para a sua regeneração como defendem os primeiros.

Subtilezas aparte, ambos vieram a público repetir o que outras personalidades, como o Bastonário da Ordem dos Advogados, já disseram em ocasiões anteriores, mas continuando por apontar a origem do problema e quando se aproxima o início de um novo ciclo eleitoral no país, muito dificilmente assistiremos a um verdadeiro esforço de correcção do modelo de distribuição de riqueza que tem conduzido as populações mundiais a estados cada vez mais próximos da pobreza absoluta.
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[1] Mão amiga fez-me chegar o endereço onde a Agência Lusa difundiu um resumo daquela comunicação sob o título Organização do mundo do trabalho acentua "cultura baseada no medo" em detrimento de cultura de excelência.
[2] Este processo tanto inclui a repressão profissional, normalmente expressa na ascensão hierárquica dos menos capazes mas subservientes, como a um nível ainda mais elementar a obsessão pela perca do posto de trabalho, tornado “leit motiv” na sociedade portuguesa através da desregulamentação e liberalização dos despedimentos e demais instrumentos de política laboral.
[3] O triste comparador é a Letónia, onde o rácio é de apenas 4,8.

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