domingo, 18 de janeiro de 2009

MERA ESTREITEZA DE VISTAS?

Enquanto continuamos a assistir ao desenrolar da ofensiva israelita contra a Faixa de Gaza, naquilo que poderá ser, para alguns, uma adequada representação do “choque de civilizações”[1], também entre nós há quem se revele muito empenhado nestes confrontos civilizacionais.

Talvez tenha sido meramente acidental que poucas horas depois de Jorge Sampaio, ex-Presidente da República e Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações[2] ter escrito no DN, sob o título de «Cinco Reflexões sobre os Desafios de uma Estratégia Nacional», que «...Portugal é uma nação muito antiga, com uma história ímpar, uma cultura universalista e prestigiada e uma forte identidade, sem conflitos étnicos, religiosos ou regionais...», o cardeal patriarca de Lisboa tenha deixado um alerta às jovens portuguesas para os riscos de casamentos com muçulmanos[3], a propósito de uma participação no primeiro evento da série «125 minutos com..»[4], porém o que ressalta das declarações daquele alto responsável da Igreja Católica não pode, nem deve, ser reduzido a um mero “fait divers”, como canhestramente foi tentado num comunicado do próprio patriarcado, citado nesta notícia do PUBLICO, onde se pretende que: «...o que o patriarca quis destacar foi que as relações com os muçulmanos têm sido "de grande simpatia - poderá mesmo dizer-se, exemplares"».

As afirmações de um alto dignitário da Igreja têm, obrigatoriamente, um peso que não se compadece do local onde sejam emitidas e aquilo que foi transmitido pela imprensa ultrapassa em muito o significado amplo e beatífico que se lhe quis dar. Pior, o cardeal patriarca não se limitou a alertar para potenciais conflitos culturais e/ou religiosos que poderão surgir aos praticantes da sua fé quando envolvidos em ligações com membros de outras comunidades religiosas; foi bem explícito e específico – o problema não ocorre com o judaísmo, o budismo ou com os praticantes de qualquer outra seita mais ou menos cristãs, mas especificamente com o islamismo.

Perante uma afirmação deste jaez como não haverá quem se interrogue sobre a humanidade e os sentimentos de paz, harmonia e compreensão que a Igreja Católica diz professar?

Bem pode a imprensa nacional desdobrar-se em entrevistas e declarações de responsáveis e especialistas, como estas do jornalista Manuel Villas-Boas ou do sociólogo Moisés Espírito Santo, para desdramatizar as palavras do cardeal.

O mal está feito e, pior, foram ainda os considerandos que teceu sobre as relações da Igreja com os homossexuais, a propósito dos quais disse (e cito de memória a partir das imagens passadas num canal de televisão) que serão acolhidos caso abdiquem das suas práticas.

Embora o tempo possa vir a fazer esquecer o que aconteceu, não podemos deixar de nos interrogarmos se o crescendo de intolerância e crispação que se vem registando na hierarquia da Igreja católica se teria registado sem a eleição do antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a versão moderna da mais tenebrosa organização de repressão até hoje criada – a Santa Inquisição – responsável por milhares de execuções e pela imposição da censura ao conhecimento e ao desenvolvimento da ciência.

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[1] Teoria proposta Samuel P. Huntington segundo a qual a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria serão as identidades culturais e religiosas dos povos.
[2] Cargo para que foi nomeado em 2007 pelo secretário-geral da ONU Ban Ki-moon
[3] Além desta notícia do PUBLICO, muitas outras poderão se consultadas: «Pensem duas vezes em casar com um muçulmano, é meter-se num monte de sarilhos», no PORTUGAL DIÁRIO; «D. José Policarpo diz que casamento com muçulmanos é um "monte de sarilhos"», no EXPRESSO e «Casar com muçulmanos é “monte de sarilhos”» no CORREIO DA MANHÃ.
[4] Série de entrevistas, destinado a comemorar os 125 anos do Casino da Figueira, que contarão com a presença de destacadas figuras públicas nacionais.

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