quarta-feira, 11 de junho de 2008

TSUNAMI SILENCIOSO


Concluída sem grandes novidades a Cimeira da FAO que teve lugar na passada semana em Roma, além das habituais declarações de boas intenções e do aparente consenso sobre a gravidade da situação da penúria alimentar mundial, de concreto temos as dezenas de manifestações e motins que ocorreram já este ano em alguns dos países mais carenciados – com especial destaque para os Camarões, Senegal, Costa do Marfim, Etiópia, Madagáscar, Egipto, Filipinas, Indonésia e Haiti – e que ontem chegaram à Bélgica, no coração de uma Europa onde alastra a contestação de alguns sectores económicos contra o aumento descontrolado dos combustíveis[1].

Perante um cenário de aumento generalizado dos preços dos bens alimentares, que insuspeitos organismos defensores do primado do mercado e das principais teses do liberalismo económico, como o Banco Mundial e o FMI, já classificaram de preocupante[2] e levou a responsável do PAM (Programa Alimentar Mundial) a apelidá-lo de «tsunami silencioso», a recente cimeira da FAO não passou de uma reunião preparatória da próxima cimeira do G8 que terá lugar em Julho e na qual não se conseguiu alcançar mais que declarações de intenções, entre as quais a de investir 6,5 mil milhões de dólares para combater a fome, valor que representa pouco mais de 20% dos 30 mil milhões julgados necessários por aquele organismo.

O evidente insucesso da cimeira (mais um na já longa carreira da FAO) já levou alguns críticos[3] a questionarem sobre a utilidade de uma mega-organização como esta e sobre as estratégias e os responsáveis que as têm defendido. Se este tipo de crítica acaba por ser justificada pelos resultados a que temos assistido, outra assente na própria metodologia de funcionamento parece-me ainda mais importante.

Que esperar como resultado de uma cimeira para debater o problema mundial da fome quando entre os seus principais participantes se encontram as empresas multinacionais produtoras de sementes, pesticidas, fertilizantes e outras que controlam o mercado dos produtos alimentares? Para quem factura milhões à custa de um crime planetário como o que permitiu patentear sementes de plantas (algo que sempre constitui um património da humanidade), ou que ao longo das últimas décadas incutiu nas populações e nos seus governos o conceito da indispensabilidade da indústria química, através do uso e abuso de fertilizantes e pesticidas, para a produção agrícola, a noção de escassez é apenas resolúvel com maior utilização dos factores que eles próprios produzem; por outras palavras, a solução do problema mundial da fome passará pelo aumento dos seus lucros.

Mesmo quando é do domínio público o clamoroso fracasso das estratégias assentes na industrialização forçada da agricultura nos países subdesenvolvidos, dos participantes na Cimeira de Roma – os produtores de OGM’s, de sementes, de junk food, todos os que criaram um circuito alimentar com milhares de quilómetros, fiéis aliados da grande distribuição – apenas é expectável uma solução do tipo mais do mesmo...

As perspectivas de agravamento da crise alimentar, e o ainda mais patético facto dos seus principais alvos serem precisamente os agricultores dos países subdesenvolvidos, e o comprovado fracasso das políticas agrícolas ditadas pelos países desenvolvidos e pelas suas indústrias agro-químicas deveria ser motivo suficiente para justificar a aplicação de um modelo diferente, um modelo que assentasse numa agricultura descentralisada e praticada em pequena escala, baseada em princípios de autosustentação e não orientada para a monocultura destinada à exportação ou aos agrocarburantes.

É certo que este tipo de prática, idêntica à que historicamente as populações locais desenvolveram e na qual basearam modelos pré-coloniais de trocas sustentadas, não proporcionará elevadas taxas de crescimento do PIB, mas assegurará a subsistência das populações locais e a produção de excedentes que adequadamente geridos sustentarão o crescimento dos seus países.

Aqui começa o segundo problema associado ao crescimento da fome – a formação de governos corruptos, associados e dependentes dos mesmos interesses económicos que têm vindo a condenar as suas populações à inanição.

O fenómeno da fome apenas poderá começar a ser mitigado quando à alteração do modelo de desenvolvimento for associada uma radical mudança no panorama político local e internacional, que trate todos os povos (ricos ou pobres) com o respeito e a dignidade que merecem.
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[1] Sobre esta questão ver os artigos da BBC NEWS e do LE MONDE.
[2] Entre outros ver estes artigos do LE MONDE, do NOUVEL OBSERVATEUR e da BBC NEWS.
[3] Ver este artigo de Carlo Petrini, o fundador da ONG SLOW FOOD, a propósito da cimeira da FAO.

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