segunda-feira, 16 de junho de 2008

SOBRE A VERGONHA DA AUTÊNTICA CRISE SOCIAL

Em A VERGONHA DA AUTÊNTICA CRISE SOCIAL, título da sua última coluna semanal no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, o Prof. César das Neves aborda a interessantíssima questão da desigualdade económica e social em Portugal.
Este tema tem sido matéria de recentes intervenções de políticos, jornalistas e analistas das variadas áreas e esta parece-me merecer especial relevo por ser assinada por quem é. Economista de formação, o Prof. César das Neves inicia a questão pela perspectiva que melhor conhece e afirma que «[a] economia não está em recessão, nem sequer próxima; o crescimento económico abrandou ligeiramente do nível baixo que tem há anos. O desemprego não subiu, nem se prevê que venha a subir muito para lá do nível alto em que permanece há bastante tempo. Mesmo nos preços, em que os rumores dos mercados do petróleo e alimentos prometem terríveis desenvolvimentos, as mudanças são mínimas: a inflação acelerou, mas para níveis aceitáveis «...». De facto, o cenário económico que as instituições respeitáveis traçam para o futuro próximo do nosso país não é catastrófico. Pelo contrário, parece copiado da situação que vivemos há algum tempo», para concluir que «...a crise que sofremos é bastante mais subtil e complexa do que as abordagens comuns asseguram. Existem muitos sinais, não de um agravamento do fundo da escala social, mas de sérias dificuldades nos extractos imediatamente acima. A nossa crise social está na classe média

Uma apreciação crítica do texto tem obrigatoriamente que se iniciar pelos pressupostos técnicos em que este se baseia e, como é cada vez mais evidente, a primeira questão a colocar versa a origem e a fiabilidade da informação estatística utilizada. Mesmo sem querer abrir aqui uma polémica sobre a qualidade do trabalho dos organismos que produzem aquela informação, é inegável que o senso comum dos cidadãos aponta para uma evidente redução da sua credibilidade. Assim, sustentar análises sobre aqueles dados sem primeiro os submeter a algum escrutínio parece-me propiciador de conclusões enviesadas, pouco fiáveis e tecnicamente criticáveis.

Mesmo admitindo que a ausência de comentários não é uma manifestação de aceitação acrítica da informação estatística, ainda assim as conclusões merecem uma leitura crítica, nomeadamente quando afirma que a crise social está apenas na classe média.

Se a conclusão de César das Neves fosse verdadeira, que dizer das conclusões do Relatório Sobre a Situação Social na União Europeia[1], publicado por Bruxelas em finais de Maio, no qual se afirma que Portugal é o país da União Europeia com maior desigualdade na distribuição de rendimentos e que é no nosso país onde o fosso entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres é maior? É que mesmo admitindo as correcções propostas pelo INE[2] o resultado não deixa do nos colocar na pior posição entre os parceiros europeus, com cerca de um milhão de pessoas (aproximadamente 10% da população nacional quando nos restantes países da UE a média é de apenas 5%) a viverem com menos de dez euros por dia.

Afirmar que a classe média portuguesa tem vindo a registar uma significativa degradação do seu poder de compra não merece grandes dúvidas, mas extrapolar a afirmação para dizer que «[o] problema merece atenção cuidada, mas está longe de ser a prioridade aflitiva que os propósitos mediáticos afirmam», argumentando que a comparação foi feita com os países do mundo onde a desigualdade é menor e porque o crescimento daquela desigualdade era inevitável devido ao desenvolvimento registado após o 25 de Abril, esquecendo a óbvia legitimidade de comparar parceiros do mesmo espaço económico (ou será que para o ilustre Prof a integração europeia se deveria resumir à dos estratos sociais mais altos?) e que desenvolvimento económico não tem que ser sinónimo obrigatório de agravamento das desigualdades sociais.

Mas a falta de rigor do autor estende-se ainda à análise que apresenta das razões para o empobrecimento da classe média – que atribui à ambição pessoal e à crendice «...nos discursos que os governantes andam a produzir há dez anos» que a induziu ao endividamento e que o desemprego, o trabalho precário e o aumento dos juros empurrou para as actuais dificuldades – e às soluções que prevê venham a ser aplicadas.

Esquecendo que os “discursos” não remontam apenas aos governos de António Guterres, mas também ao dos governos de Cavaco Silva (de quem o Prof. foi um dos distintos conselheiros) e que os níveis alarmantes de desemprego, de trabalho precário e de subida dos juros não são obra da credulidade das populações mas sim consequência das políticas económicas, fiscais e sociais dos governantes, talvez espere que ninguém erga o dedo acusador às políticas monetaristas e ao fracassado modelo de desenvolvimento conhecido por globalização, de que é um dos grandes defensores, enquanto sub-repticiamente vai deixando o recado de que o importante é resolver o problema (talvez recorrendo a uma ainda maior liberalização dos mecanismos económicos e mais umas quantas privatizações) e não calar os críticos, entre os quais se pode colocar Joseph Stiglitz[3], que no artigo ESCASSEZ NA ERA DA ABUNDÂNCIA, publicado no DIÁRIO ECONÓMICO, expõe também o seu ponto de vista sobre o mesmo problema, defendendo um regresso de uma política fiscal que não isente os rendimentos de capital em detrimento dos outros rendimentos.
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[1] O texto integral do relatório pode se lido aqui.
[2] O texto da nota explicativa do INE está disponível aqui.
[3] Economista norte-americano, professor na Universidade de Columbia, foi conselheiro económico de Bill Clinton e economista do Banco Mundial e galardoado com o Prémio Nobel da Economia em 2001, conjuntamente com A. Michael Spence e George A. Akerlof, pelo seu trabalho de desenvolvimento dos fundamentos da teoria dos mercados com informações assimétricas; defensor dos princípios neo-keynesianos de intervenção do Estado na economia, é um crítico severo das teorias neo-liberais as quais não tem poupado nos seus principais trabalhos.

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