domingo, 27 de abril de 2008

DISCURSOS LEVA-OS O VENTO

Foi intencionalmente que esperei um par de dias antes de aqui comentar o discurso do Presidente da República na 34ª Sessão Comemorativa do 25 de Abril e fi-lo na dupla expectativa de “deixar assentar a poeira” das primeiras reacções e de esperar por algum comentário mais maduro, porque evidentemente comentários como o do Primeiro-ministro José Sócrates: «Eu só posso concordar com o senhor Presidente da República e manifestar minha adesão à vontade que o Presidente exprimiu de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para chamar mais a atenção dos jovens para a política. Mas é natural que os jovens tenham outras preocupações»[1] são tão inúteis e vazios como qualquer outra lapalissada[2].

Aliás generalidades e disparates sobre o tema do discurso presidencial (incluindo o próprio discurso) são matéria suficiente para muitas e longas dissertações.

Senão vejamos:

Disse o nosso presidente que «(n)ão é justo para aqueles que se bateram pela liberdade, tantas vezes arriscando a própria vida, que a geração responsável por manter viva a memória de Abril persista em esquecer que a revolução foi um projecto de futuro e que, por ter sido um projecto de futuro, deve continuar a ser um sonho inspirador e um ideal para as gerações vindouras». Frase bonita, promissora, muitos dos homens que estiveram envolvidos nos acontecimentos de Abril de 74 tê-la-ão apreciado, mas os que prezem a sua própria memória deverão lembrar-se que os primeiros revezes ao “projecto de futuro” ocorreram durante o período em que o próprio Cavaco Silva foi Primeiro-ministro.

O estudo[3] que diz ter encomendado à Universidade Católica e no qual baseou o essencial do seu discurso apresenta um conjunto de conclusões que parece ter surpreendido o Presidente da República e a generalidade da classe política nacional. Ora isto mesmo é apenas a prova do profundo alheamento em que vivem os dirigentes deste país; não são apenas os jovens portugueses que revelam uma inaceitável ignorância de factos históricos basilares, são também aqueles que revelam um total autismo da realidade social que pretendem dirigir.

Já no passado mês de Fevereiro, a propósito de um documento que a SEDES então publicou, me pronunciei aqui sobre o crescente afastamento entre políticos e eleitores que no fundo não é muito diferente da questão agora levantada por Cavaco Silva, porque se aquele foi abordado numa perspectiva económica – o crescente fosso entre os rendimentos dos mais ricos e os dos mais pobres – este de natureza cultural deriva directamente daquele.

Quem de boa fé pode esperar que a generalidade dos nossos jovens se preocupe com a aquisição de conhecimentos e competências quando as perspectivas de vida que os dirigentes nacionais lhes oferecem são reduzidas ou nulas? Quem pode negar que o clima de insatisfação profissional e laboral é inevitavelmente transmitido aos mais jovens e numa fase particularmente susceptível das suas vidas?

Quem acompanhe minimamente o ambiente que se vive nas nossas escolas (e para tal basta ter seguido o percurso escolar de um jovem nos últimos vinte anos) não pode afirmar-se espantado com fenómenos como o do alheamento, do desinteresse, da alienação cultural ou até do abandono escolar, porém os sucessivos governantes que temos conhecido agem como se de nada se tivessem apercebido e tudo corra como se vivêssemos no melhor dos mundos!

Se o Presidente da República pretende fazer-nos crer que sente que «…não temos conseguido mobilizar os jovens para um envolvimento mais activo e participante na vida política…» e que «…a população portuguesa tende a ser céptica em relação à eficácia da participação política tradicional, isto é, aquela que é feita através dos partidos…» como pode esperar que da anunciada intenção de «…promover em breve um encontro com representantes de organizações de juventude, tendo por objectivo colher a sua opinião sobre o distanciamento dos jovens em relação à política e sobre as medidas que possam contribuir para minorar ou inverter esta situação…» possa resultar algo diferente de “mais do mesmo”?

Para os mais cavaquistas que o próprio Cavaco recordo que foram durante os anos da sua passagem por S. Bento que se enraizaram os saudáveis” princípios do “politicamente correcto”, já para não falar da política de sobrevalorização do betão em detrimento da cultura e que data desse mesmo período de governos de nítida tendência tecnocrática a proliferação da cultura do oportunismo, do facilitismo e do sucesso instantâneo e a qualquer preço…

Se os anteriores governos de Mário Soares já tinham marcado a primeira vaga de reformismo político – período em que o mais importante deixou de ser o debate das ideias perfeitamente consignado no princípio de “arrumar o socialismo na gaveta” – foi com a ascensão da plêiade cavaquista que a importância do “parecer” se assumiu definitivamente sobre “o ser”e “o saber”.
A um Cavaco convicto sucedeu-se um Guterres, prenhe de hesitações mas forte no seu “oásis” até que pressentindo a derrocada optou pela desistência. Foi um período em que na ausência de uma crítica assumida ao modelo anterior se permitiu o seu desenvolvimento e enraizamento – foi a concretização do sonho da EXPO e o ainda mais anacrónico lançamento do grande desígnio nacional da organização de um Europeu de Futebol – enquanto éramos alegremente empurrados para o passo seguinte.

Ao titubeante e negocial Guterres seguiu-se um jovem Durão Barroso que prometeu mundos e fundos e fugiu em direcção à Comissão Europeia à primeira oportunidade. Como se não bastasse o inqualificável acto de subserviência em que se traduziu o seu papel de mordomo da Cimeira das Lages que prenunciou a invasão norte-americana do Iraque, ainda abandonou as funções deixando no seu lugar um substituto de enormíssimo peso político – o inqualificável Santana Lopes – e o acólito Paulo Portas.

Tudo isto aconteceu com o beneplácito do antecessor de Cavaco Silva na Presidência da República – Jorge Sampaio – que a tudo foi dando a indispensável cobertura legal, talvez na expectativa de assegurar para o seu partido (o PS) uma vitória nas eleições que toda a gente sabia que viriam a ser antecipadas e que, na linha do benjamim de Cavaco Silva, nos trouxeram José Sócrates, o benjamim de António Guterres.

Perante esta rápida resenha que expectativas poderemos alimentar para o nosso futuro? Será com o contributo dos “jotas”, formados em generalidades e banalidades, que ambicionam substituir no poder os seus actuais detentores que surgirão contributos válidos para invertermos a situação de cinzentismo político que é o que realmente revela o estudo da Universidade Católica?

Para mim, como para muitos outros, que não pertencem nem nunca pertenceram a qualquer associação de “jotas”, a resposta é particularmente simples – este discurso e as iniciativas de Cavaco Silva continuarão a ser apenas mais do mesmo…pelo menos enquanto aceitarmos pacificamente que aqueles que nos conduziram até aqui se arroguem o estatuto de salvadores da Pátria.

Isto dito, invade-me uma tristeza tão grande e um sentimento de incapacidade tal que nem a nota de esperança com que planeei acabar este post parece já fazer sentido. Mas, para os que forem mais optimistas que eu, aqui recordo uma parte da crónica semanal de Baptista-Bastos[4]:

«O FUTURO É HOJE

Trinta e quatro anos depois, continuo a viver no refúgio das minhas esperanças. É muito difícil separar-me dessa ideia de comunidade que foi a moral da resistência, e do conceito de que a História caminha no sentido da libertação do homem. Mas também aprendi a não me acomodar a essa espécie de vocação para o desencanto, reduto onde se lastimam homens e mulheres da minha geração e da seguinte. A festa acabou. Vivemos um instante em que protagonizámos um apólogo presumidamente dialogal, porque, na realidade, havia, e sempre houve, dois países, com compromissos inconciliáveis e linguagens opostas. A existência de classes não é uma falácia, embora queiram inculcar a sua ausência a fim de impedir que as julguemos.

A festa acabou. Não terminou, porém, a definição daquilo que possui a faculdade de reavivar o que pretendem fazer-nos esquecer: os sonhos, a teimosia da vontade, a obstinação da esperança. Chamam-lhe utopia, e condenam-na como fautor de destruição do outro e, portanto, de si próprio, em benefício de uma verdade suspeita. A cada um a sua idiossincrasia, as suas possibilidades, a sua área de agir. Pessoalmente, sou incapaz de viver sem palavras, sem livros, sem o ajustamento desses livros e dessas palavras a uma ética que respeite o leitor, para nunca me extraviar do princípio das convicções mútuas
___________
[1] Citado nesta notícia do PUBLICO.
[2] Termo de origem francesa, criado a partir de um verso da Canção "La Mort de la Palice" dedicada a Jacques de la Palice e que retrata uma frase que contém uma repetição que já poderia ser deduzida sem qualquer ambiguidade a partir de uma afirmação contida na primeira parte da frase. (adaptado de Wikipédia).
[3] O ESTUDO SOBRE AS ATITUDES E COMPORTAMENTOS POLÍTICOS DOS JOVENS EM PORTUGAL, pode ser encontrado neste endereço.
[4] A crónica de Baptista-Bastos pode ser lida na íntegra aqui.

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