quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

QUEM NÃO SABE, É COMO QUEM NÃO VÊ

Quem tenha acompanhado com algum interesse o discurso sobre o Estado da Nação que anteontem pronunciou o presidente Bush e há alguns anos tivesse deixado de ler jornais e ouvir notícias, poderia ficar com a impressão que tudo corre pelo melhor nos EUA, salvo, talvez, dois pequenos detalhes: uma guerra e uma crise económica.

Mesmo sendo certo que este foi o último daquele tipo de discursos protagonizado por George W Bush enquanto presidente dos EUA, como se pode admitir o autismo de uma administração que além de ter conduzido alegremente o seu povo para um conflito que se arrasta há quase cinco anos, já custou milhares de vidas e milhões de deslocados, nada fez em prol da melhoria das condições de vida da esmagadora maioria dos seus cidadãos e ainda se apresenta com um plano de emergência exclusivamente baseado em medidas de natureza fiscal para atenuar os efeitos de uma crise económica originada por um modelo de desenvolvimento baseado na concentração da riqueza num reduzido número de investidores e especuladores?

Por incrível que possa parecer a resposta além de simples é curta!

Tudo, ou quase, é consequência da predominância das teorias ultraliberais, originadas por Milton Friedman na Universidade de Chicago, inicialmente obtida através do uso da força e actualmente mediante recurso à instauração de climas generalizados de medo[1].

Nas últimas décadas a ideia da uniformização de modelos e conceitos (económicos, políticos e sociais) tem conduzido a economia a um estado de total dependência de uma entidade supranacional, quase cosmológica: o mercado.

Só que essa entidade não funciona como o postularam os teóricos que seguem as pisadas de Friedman – o mercado não se autoregula pelo simples facto de que os que com ele têm enriquecido esperam e continuam a querer enriquecer sempre mais! A beleza e a harmonia da teoria da “mão invisível” (a tal entidade cosmológica) tem-se revelado na brutalidade com que cresce o fosso entre países ricos e países pobres e entre os que concentram cada vez maior volume de riqueza e os que possuem cada vez menos.

Esta realidade é tanto mais perceptível quanto diariamente se assiste a novas iniciativas de apropriação privada de bens públicos – quem já esqueceu os anos em que serviços como a saúde, a educação, a segurança social, a produção e distribuição de energia eléctrica, para só citar uns quantos, eram assegurados pelos Estados – e à destruição de valores morais e princípios éticos em nome da necessidade do equilíbrio orçamental e do lucro individual.

Talvez por tudo isto as recentes declarações do director-geral do FMI, o francês Dominique Strauss-Khan, apelando a que os governos que disponham de folga orçamental (leia-se, sem défices pronunciados) substituam o objectivo de contenção dos défices públicos pelo do crescimento económico, tenham provocado alguma agitação e devessem ter sido entendidas pela administração Bush.

Não que isso tivesse mudado algo no muito de errado com que os americanos nos têm brindado nos últimos anos – além da guerra e da retracção da economia mundial, ainda lhes ficaremos a dever as muitas limitações às liberdades individuais e as violações aos direitos humanos – mas sempre poderia ter evitado o ridículo que foi ver o presidente da potência hegemónica apresentar o mais cândido e inocente dos ares no meio da confusão generalizada que ajudou a criar.
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[1] As primeiras aplicações práticas dos princípios económicos ultraliberais de Milton Friedman ocorreram nos anos 60 e 70 do século passado na América Latina e foram produto das sucessivas ditaduras militares que os EUA patrocinaram naquele continente; a esta sucederam-se o Sudoeste Asiático, graças a uma vaga de regimes militares, a Rússia do período de Boris Yeltsin, e a China, com a invenção do capitalismo de estado, procedendo à destruição das débeis economias locais para as substituir por economias de mercado livre.
Nas chamadas democracias ocidentais o processo foi bem mais subtil, mas normalmente associado a períodos de crises (reais ou imaginários), como a Guerra das Malvinas, a Guerra contra o terror e a falência dos regimes de segurança social. Em comum todos apresentam o mesmo resultado final – a liberalização e a desregulamentação dos mercados associada a processos de privatização de sectores básicos para a actividade humana, como a educação, a saúde e a segurança.

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