sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

PELO CANO

A SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, um dos três principais bancos franceses, anunciou ao final do dia de ontem que um dos seus operadores de mercado teria provocado um prejuízo da ordem dos 4,9 mil milhões de euros.

Esta notícia, e este tipo de “eventos”, não são novidade e felizmente não costumam ocorrer com frequência, facto que não inviabiliza que a generalidade das pessoas se questione sobre a respectiva explicação, tanto mais que as que surgem na imprensa nem sempre primam pela clareza e objectividade.

A atestar pela informação disponibilizada pelo banco francês, Jérôme Kerviel exercia as funções de trader[1], negociando contratos a prazo sobre o mercado de acções terá iniciado em 2007 uma estratégia orientada no pressuposto de que durante o ano se registaria uma queda nos diferentes índices bolsistas; quando esta não se verificou terá então optado por uma inversão radical de estratégia, passando para uma posição orientada para a subida; da conjugação das duas posições terá resultado um acumular de prejuízos que no caso dos produtos financeiros derivados – futuros e opções – pode ascender rapidamente a muitos milhões de euros.

Mas mais importante que aceitar as explicações dos responsáveis da SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, que procuram justificar a situação com o facto do operador dominar os procedimentos de controlo usados no banco em virtude de neles ter trabalhado anteriormente, é entender como tudo isto pode ter acontecido.

Teoricamente os operadores de mercado estão sujeitos a dois tipos distintos de controlo; o primeiro no interior da própria sala (diariamente deverão fornecer informação sobre o tipo de activos transaccionados e sobre os montantes envolvidos) e um segundo que é executado pelos serviços administrativos do próprio banco (vulgarmente designado por “back-office”). Esta divisão de tarefas assegura que no interior do próprio local de negociação a actividade dos operadores é monitorizada e eventuais excessos podem logo ser corrigidos, enquanto uma entidade exterior assegura uma segunda verificação, normalmente desafectada da emotividade própria da actividade de negociação.

Então, se existem estes mecanismos porque é que de quando em vez ocorrem casos como este?

A resposta é simultaneamente simples e complexa. Simples porque a primeira razão prende-se com alguma anomalia num dos dois locais – na sala de mercado ou no “back-office” – e complicada porque normalmente as coisas não funcionam assim de forma tão linear. Seja porque os bancos não aplicam regras prudências suficientemente estritas que inviabilizem os excessos dos seus operadores, seja porque as pessoas a quem são cometidas as funções de controlo no interior da estrutura ou a negligenciam ou carecem de “know-how” mínimo para o seu exercício.

Só assim se pode entender que durante dias e dias a fio um operador realize um número suficientemente de transacções que culminem num descalabro da dimensão do agora reportado pela SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, porque mesmo que este domine os meandros dos procedimentos de controlo a que deve ser sujeito, se este for correcta e atempadamente executado, o montante nunca poderia atingir semelhantes valores.

Mesmo considerando que os instrumentos financeiros têm conhecido um acelerado processo de sofisticação apenas na situação de não ser regularmente providenciada a indispensável formação a todos os intervenientes no processo é que seria possível que aqueles que exercem a função de controlo fossem regularmente ultrapassados pela “habilidade” do operador.

Embora tudo aponte para que a razão para a delicadíssima situação em que se encontra o banco lesado resulte de uma deficiente organização interna, outras razões podem ter contribuído para este resultado final.

Se nos lembrarmos que as práticas actuais de gestão apontam no sentido da sobrevalorização dos resultados – o sector financeiro é sem sombra de dúvida aquele onde impera o primado do lucro a qualquer custo – e no uso e abuso de políticas remuneratórias baseadas em resultados (ganhos), sabendo-se as enormes disparidades nos vencimentos que recebem os responsáveis hierárquicos, os operadores e os administrativos encarregues das funções de controlo… talvez se comece a perceber melhor porque estes incidentes ocorrem!

Na prática, ao que tudo indica, iremos voltar a assistir à repetição do que ocorreu em 1995 quando, Nick Leeson, um operador do BARINGS BANK levou aquele banco à falência após a revelação de um “buraco” de 1,3 mil milhões de dólares na sua filial asiática; o escândalo saldou-se com a compra do BARINGS pelo congénere holandês ING e pela condenação do operador a uma pena de prisão de quatro anos.

Então, como agora, ficou por esclarecer as responsabilidades de toda a cadeia de direcção da filial e do banco e, ao que tudo indica, ficaram por interiorizar as lições dos erros cometidos.

Agora, como então, voltamos a assistir a uma rápida responsabilização do elo mais fraco enquanto os responsáveis permanecerão seraficamente nas suas funções, esperando que tudo regresse à normalidade e o sucedido não se repita.

Para reflexão deixo apenas uma rápida analogia (com as devidas ressalvas para os montantes e os contornos da operação) com o caso do Millennium BCP e da prática de manipulação de cotações que as desavenças entre accionistas tornou público e que as autoridades competentes – Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários – tardam em investigar, publicitar e punir; e uma chamada de atenção para o facto da SOCIÉTÉ GÉNÉRALE ser, salvo erro, um dos principais fornecedores de produtos estruturados ao sistema financeiro português.
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[1] Trader, termo anglo saxónico que designa o operador que negoceia a aquisição ou venda de instrumentos financeiros.

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