quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

NÃO É UM PROBLEMA DE LIXO

Na ponta final de 2007 voltámos a encontrar nos meios de comunicação notícias sobre a insustentável situação do problema da recolha e tratamento dos lixos na cidade de Nápoles. Choveram imagens das “lixeiras” em que foram transformadas as ruas e estradas daquele município italiano e arredores; os políticos locais desdobraram-se em declarações e o governo, liderado por Romano Prodi, prontamente decidiu recorrer ao exército para colaborar na remoção das mais de 100.000 toneladas de lixo acumulado.

Embora gravíssima e reveladora do desleixo que tem rodeado o tratamento desta questão, a verdadeira razão que me leva hoje a abordá-la aqui é muito mais profunda.

Os que se têm limitado a acompanhar o problema pelos meios de comunicação, estarão já cientes de que esta é uma questão redundante naquela região de Itália[1], de que existem grandes interesses em torno do problema, porquanto ninguém nega que o processamento de resíduos urbanos é um dos grandes negócios dos tempos modernos[2] e julgarão mesmo que o principal responsável pela situação é a Camorra (versão napolitana da Máfia siciliana). Em defesa desta última tese é inegável a influência duma organização que tem retirado enormes lucros da incapacidade dos responsáveis locais e nacionais para fazer aplicar uma solução para o problema, bem expressa no facto de até agora terem conseguido bloquear todas as tentativas de instalação de incineradoras, de controlarem as unidades de processamento dos resíduos e os respectivos aterros, incluindo os ilegais, prática que lhes tem permitido praticar uma política de preços extremamente agressiva.

Enquanto algumas organizações locais vão fazendo ouvir as suas críticas à passividade dos políticos (e à nefasta influência da Camorra), os problemas associados à falta de condições para o processamento dos resíduos[3] que se acumulam nas ruas e vias da região determinam que outras unidades do país e do estrangeiro se recusem a proceder à respectiva incineração.

A par com esta dificuldade, acresce ainda o facto desta recorrente situação de acumulação de resíduos ser já apontada como causa para a elevada taxa de incidência local de enfermidades como o cancro e de doenças do foro respiratório, enquanto no capítulo dos prejuízos é de referir a paralisação dos cerca de 100.000 estudantes da região por verem os seus estabelecimentos de ensino encerrados e a estimativa da ordem dos 500 milhões de euros, originados na quebra da procura dos produtos agro-alimentares locais e do turismo, recentemente divulgados por associações sindicais e patronais[4].

Perante este cenário de calamidade, além de apontar o dedo à Camorra e aos políticos, que outras ilações podem ser retiradas? A primeira é a de que problemas desta natureza podem ocorrer em muitos outros países e locais[5]; depois importa recordar a necessidade da tomada de decisões atempadas e correctamente orientadas para as populações, mas a mais importante de todas é a de que as dificuldades dos napolitanos não resultam apenas da corrupção e da inépcia dos políticos. O lamentável estado a que chegou este problema é principalmente fruto duma política económica incorrecta e absolutamente prejudicial das populações em geral e das de menores recursos em especial.

Não grassasse um despudorado furor de privatizar tudo o que possa oferecer um mínimo de lucro e talvez os habitantes da Campania não estivessem abraços com as toneladas de lixo que ciclicamente ameaçam subjugá-los.


Na prática este problema é em tudo idêntico aos que assolam vastas áreas do mundo, onde se praticam políticas de sistemática redução da intervenção pública em benefício da chamada livre iniciativa; cada vez que algures um estado entrega a um reduzido número de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) a tarefa de zelar por interesses colectivos, sejam eles ao nível da saúde, da educação, da distribuição de energia e água, de saneamento básico ou de transportes de proximidade, estão-se a criar as condições para, a prazo, se registar algo de semelhante.

Não é um problema de lixo... é um problema de políticas económicas desajustadas!

______________
[1] Há cerca de 15 anos que de forma cíclica se têm colocado problemas na recolha e tratamento dos resíduos urbanos na região de Nápoles. A última grande crise ocorreu em meados de 2007, altura em que as autoridades renovaram, uma vez mais, as intenções de resolver definitivamente a questão, com o desenvolvimento que agora se vê.
[2] As empresas que gerem as unidades de tratamento dos resíduos são remuneradas, pelos organismos públicos nacionais e comunitários, pelo serviço de separação e triagem e o processo de incineração, porque é gerador de combustível classificado como fonte de energia renovável, volta a ser alvo de contribuições financeiras (subsídios)dos mesmos organismos.
[3] As tentativas ensaiadas pelas autoridades italianas no sentido de procederem à incineração noutras regiões do país dos resíduos originados na Campania, têm-se confrontado com a forte oposição das populações uma vez que é público o facto das entidades e empresas napolitanas (controladas pela Camorra) não procederem à devida separação, o que na prática aumenta os riscos de libertação para a atmosfera de dióxinas e outros produtos tóxicos.
[4] Ver a propósito a notícia do DIÁRIO DIGITAL.
[5] A propósito desta situação em Nápoles, a BBC NEWS dava conta de que mais de uma vintena de países da UE não cumprem os normativos comunitários sobre o processamento de resíduos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei muito do que você escreveu, embora não sou muito chegado em lixo,poluição... Aqui no Brasil estamos próximos de passar por um problema desses, pois, na minha singela opinião a nossa população esta despreparada, e nossas políticas governamentais sejam ineficientes; na grande maioria nossos políticos estão muito ocupados em roubar e não estão preocupados com esses problemas.
Nossas prefeituras deveriam ter por obrigação um programa de coleta seletiva, projeto esse que deve dar incentivo fiscal para que as famílias reciclem o lixo doméstico. E as empresas não deveriam ficar de fora, as que provassem que tratam e reutilizem a água, reciclem, investem em alguma forma de poluir menos deveriam receber incentivos também.
Abraço e parabéns pelo texto.
Gilvan Simão Nunes.
http://www.almasempunho.blogspot.com/