sábado, 10 de novembro de 2007

O DILEMA PAQUISTANÊS

Prometida em Agosto passado por responsáveis governamentais paquistaneses, eis que chegou a implantação do estado de emergência àquele país islâmico[1].

Quando parecia estar a dar frutos a estratégia norte-americana de futura divisão do poder entre o actual ditador militar Pervez Musharraf e a ex-primeiro-ministro Benazir Bhutto, eis que pretendendo manter o país sujeito à sua vontade, sob permanente pressão dos movimentos islâmicos radicais e receando uma decisão desfavorável do Supremo Tribunal que o impedisse de manter a presidência do país, Musharraf terá optado pelo mal menor e pela solução que melhor conhece – o uso da força e a declaração do estado de emergência.

Tal como já aconteceu este ano, quando Iftikhar Mohammad Chaudhry, o presidente do Supremo Tribunal, foi afastado das suas funções[2], os advogados e juízes voltam a manifestar-se como a principal fonte de oposição ao poder militar enquanto se aguarda que a recém chegada líder do PPP (Partido do Povo Paquistanês) Benazir Bhutto decida se também pretende engrossar a lista dos contestatários ou manter-se fiel aos acordos firmados com a secretaria de estado norte-americana e aguardar pelo desenrolar dos acontecimentos.

As incógnitas são múltiplas, porque se pouca gente duvida da verdadeira razão para a aplicação do estado de emergência[3] e a limitação das poucas liberdades vigentes no Paquistão, começa a crescer a convicção de que os principais beneficiados estarão a ser os grupos radicais islâmicos contra os quais Musharraf diz ter agido. Enquanto americanos e ingleses tentam desesperadamente não “perder” o grande aliado na «guerra contra o terror» inventada pelos neocons, no terreno o confronto entre Musharraf e Benazir Bhutto parece estar a ganhar novos contornos.

Afastados parecem os tempos em que tudo se resumiria a uma briga de cão e gato (ou gata) apadrinhada pela inefável secretária de estado norte-americano, Condoleezza Rice, como então os retratou Jeff Danziger nas páginas do New York Times...

porque embora se mantenha a indefinição quanto à posição de Benazir Bhutto e do seu PPP – dividida que está entre manter os acordos com os americanos que lhe darão acesso directo e rápido ao poder e integrar o movimento que nas ruas vai contestando a política de Musharraf – esta veio recentemente reafirmar os termos para o acordo, quando ameaçou apelar à mobilização dos partidários do PPP caso Musharraf não aceite restaurar a constituição, não anuncie a data das próximas eleições e não abandone o cargo militar de chefe do estado-maior.

Enquanto se sucedem as notícias sobre prisões de opositores (com as prisões domiciliárias de Chaudhry e de Benazir a revelarem-se respectivamente a mais representativa e as mais mediática), o correspondente local da BBC[4] assegura que aqueles mesmos termos terão sido reafirmados telefonicamente por George W Bush e que poderão até já ter produzido algum efeito uma vez que o general anunciou posteriormente a realização de eleições em 15 de Fevereiro do próximo ano. Porém, na opinião dos seus opositores esta não passará de mais um logro uma vez que têm sido múltiplos os avanços e recuos dos militares quanto à realização de eleições e o inevitável regresso aos quartéis.

Como que a dar razão a esta leitura, em resposta às suas declarações Benazir Bhutto foi colocada em situação de prisão domiciliária e impedida de participar em qualquer manifestação; este facto não parece preocupar uma parte da oposição na medida em que para alguns dos seus líderes a actuação de Benazir Bhutto caracteriza-se por uma manifesta indecisão quanto a integrar o movimento de oposição aos militares.

Um dos críticos assumidos de Benazir é Imran Khan líder do PTI (Pakistan Tehreek-e-Insaf ou Movimento para a Justiça, partido que ajudou a fundar em 1997) e ex-capitão da equipa paquistanesa de cricket[5] que venceu a Taça do Mundo em 1992, que se opõe frontalmente a que Musharraf continue a exercer qualquer tipo de cargo no Paquistão; o seu principal problema é que continua a ser mais conhecido pelos feitos desportivos e pelo papel de playboy que pela sua actuação política e não dispõe da capacidade de mobilização popular equivalente à de Benazir.

A estratégia ambivalente desta deverá começar a ser cada vez mais encarada como uma parte do problema, tanto mais que paralelamente se torna cada vez mais evidente a incapacidade dos militares paquistaneses lidarem com os extremistas islâmicos, num território que além de vizinho partilha fortes ligações tribais com o cada vez mais problemático Afeganistão.

Aliás, o fenómeno da ambivalência parece der uma nota dominante na política paquistanesa. Começando na já referida actuação de Benazir Bhutto durante a actual crise, passando pela de Musharraf que justifica a instauração do estado de emergência como meio de combate aos extremistas islâmicos mas deste resulta a suspensão das liberdades cívicas, a prisão de juízes, advogados, políticos oposicionistas e estudantes enquanto liberta extremistas islâmicos ao abrigo de um acordo de troca de prisioneiros e acabando nas conhecidas ligações entre o ISI (serviços secretos paquistaneses) e a Al-Qaeda[6], tudo reforça a imagem de reduzida credibilidade de um país que desde a sua fundação há sessenta anos nunca conheceu uma verdadeira estabilidade de regime, oscilando entre períodos de alguma democraticidade com outros de ditadura militar.

Talvez por tudo isto a preocupação dos países ocidentais com o desenvolvimento da actual crise seja perfeitamente justificada, tanto mais que o Paquistão, a par com a Índia e Israel, é um dos países da zona que dispõe de tecnologia nuclear (do seu interior terá partido o know how[7] que facilitou à Coreia do Norte a entrada no clube dos países com armamento nuclear) e a instabilidade reinante pode bem constituir uma oportunidade de ouro para grupos extremistas conseguirem obter material e equipamento nuclear. Esta hipótese estará entre as principais preocupações da administração Bush e é apresentada como principal justificação para o apoio que mantém ao general Musharraf, mesmo quando este se tem revelado totalmente ineficaz na estratégia de combate à Al-Qaeda.

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[1] Veja-se o que a propósito desta hipótese e da crise da Mesquita Vermelha escrevi aqui.
[2] No início deste ano o presidente do Supremo Tribunal paquistanês foi afastado do cargo, decisão a que se seguiu um período de manifestações e confrontações entre autoridades e advogados até à reinstalação de Chaudhry no cargo.
[3] O estado de emergência traduz-se entre outras medidas na suspensão das salvaguardas constitucionais sobre liberdades e segurança, aumenta os poderes policiais de detenção e privação de assistência jurídica, suspende o funcionamento dos meios de informação.
[4] Veja a notícia aqui.
[5] Desporto considerado por muitos como parecido com o basebol americano; as suas origens remontam à Idade Média tendo-se tornado num desporto bastante admirado no Reino Unido, na Índia e no Paquistão. É disputado por duas equipas com onze jogadores, num campo sem dimensões fixas, com cada uma das equipas a tentar, à vez, atingir o alvo do adversário (três varetas fincadas no solo, chamadas wicket); os jogadores das duas equipas tomam posições de ataque ou defesa, de acordo com a posse da bola, e agem com o objectivo de atacar ou defender o wicket.
[6] Esta organização, que sempre tem mantido fortes laços com a CIA, foi por esta utilizada para fomentar o movimento taliban na oposição à presença soviética no Afeganistão e, como recentemente se pode comprovar no incidente da Mesquita Vermelha, com ele continua a manter relações particularmente estreitas.
[7] É habitualmente atribuído ao paquistanês Abdul Qadeer Khan, designado pai da bomba atómica paquistanesa, a proliferação dessa tecnologia por outros países, entre os quais a Coreia do Norte.

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