quarta-feira, 17 de maio de 2006

O PODER DE UMA CARTA

No início deste mês foi tema de quase todos os órgãos de comunicação a notícia de uma missiva do presidente iraniano – Mahmud Ahmadinejad – ao presidente norte-americano – George W. Bush. Mais relevante que o respectivo conteúdo, que viria a ser conhecido uns dias mais tarde, foi a resposta americana, ou melhor, a sua ausência.

Independentemente de quem julgue o texto enviado por Ahmadinejad um completo chorrilho de disparates, o que fica (e ficará para a história) é a atitude de silêncio absolutamente inexplicável da administração americana, tanto mais que (fazendo fé nas traduções em inglês e francês que li) existem pontos dignos de crítica e contestação.

Num estilo floreado (muito característico dos povos orientais) e teológico, Ahmadinejad vai apresentando um conjunto de razões explicativas da diminuta simpatia que muitos povos nutrem pelos americanos, centrando a sua atenção particularmente em Israel, na situação palestiniana, na injustificada invasão do Iraque e no apoio americano a Saddam Hussein no tempo da guerra com o Irão e aos movimentos autoritários que têm cerceado as liberdades na América Latina. Ahmadinejad leva ainda mais longe a sua análise, a ponto de questionar Bush sobre o inexplicado 11 de Setembro de 2001, sobre o clima de insegurança e o nível de indigência de um número crescente de cidadãos americanos, para terminar com uma exortação ao respeito pelos ensinamentos das religiões monoteístas e à abertura de diálogo entre os dois governos.
Conhecendo-se o pano de fundo das relações iraniano-americanas, suspensas desde o derrube do Xá Reza Pahlevi e a subida ao poder do ayatolah Khomeini, em 1979, e a tensão criada com a pretensão iraniana de dominar o processo de enriquecimento de urânio, é simplesmente incompreensível o silêncio americano a esta iniciativa.

Como estou convicto que tal não resulta da dificuldade em encontrar tradutor adequado, nem na inexistência de capacidades para contradizer alguns dos argumentos apresentados por um regime teocrático e autoritário, apenas posso concluir que o silêncio se deverá a uma estratégia há muito tempo concertada – a administração de George W Bush prepara-se para levar a cabo a linha de actuação que sempre norteou a sua actuação naquela região do planeta e o Irão será o próximo alvo da “guerra tecnológica” americana. Respeitando a inspiração dos sectores neo-conservadores americanos esta arrogante estratégia de silêncio contribui também para entender o aparente recuo americano na última reunião do Conselho de Segurança da ONU, donde resultou a aceitação da tese de apresentar ao Irão um nova proposta (atribuída à UE), segundo a qual esta se dispõe a partilhar tecnologia nuclear (reactor de água ligeira) com aquele país e facilitar o seu acesso à Organização Mundial do Comércio, caso este aceite suspender a produção de urânio enriquecido (limitando se a adquiri-lo à Rússia).

Contrariamente ao que possa parecer, os falcões americanos não arriscaram rigorosamente nada nesta estratégia. Dando a ilusão de aparente disponibilidade para resolver diplomaticamente a crise, ganharam algum campo de manobra junto dos seus críticos ocidentais enquanto tinham assegurada a recusa iraniana, uma vez que um governo com as características do iraniano não pode aceitar trocar ouro por doces (conforme noticiou hoje o ”Le Monde”, terá sido esta a resposta de Ahmadinejad).

Tudo isto terá tido a utilidade de revelar, se dúvidas houvessem, os objectivos dos dois governos:
  1. o iraniano que pretende dispor de condições para vir a produzir armamento nuclear;
  2. o americano que visa eliminar mais um dos «Eixos do Mal» e aproveita para “vingar” velhas afrontas (a revolução islâmica e o assalto à sua embaixada em Teerão) a pretexto de contrariar esta intenção.
Como já o referi em anteriores ocasiões, honestamente não creio que a comunidade internacional disponha de um único argumento válido para impedir o Irão de aceder ao clube nuclear, nem que o risco de um conflito nuclear no mundo aumente por esta via. Quando o Paquistão, outro país tão islâmico como Irão, a Índia (arqui-rival confessa do Paquistão), a Coreia do Norte (outro estado totalitário e militarista) e Israel já dispõem daquele tipo de armamento, porque é que o acesso do Irão a este clube fará alguma diferença? Ficará o território norte-americano mais exposto a um ataque nuclear iraniano que a um ataque russo ou brasileiro (país que também desenvolve um programa nuclear que tem conhecido “dificuldades” com os inspectores da AIEA)?

Sendo a resposta evidentemente negativa resta procurar algures a razão para todo este imbróglio. E nem sequer é preciso ir longe, a resposta está na região e na política israelita!
Quem na realidade não pode admitir um Irão nuclear é Israel, porque esta situação alterará substancialmente a sua posição de única potência nuclear na região. Não que Israel tenha necessidade de “discutir” a sua posição de potência regional, mas porque esta situação eliminaria uma das suas grandes vantagens na região (a outra é o apoio sem reservas dos EUA) e poderia mesmo condicionar a sua política expansionista e unilateralista face ao problema palestiniano e aos seus demais vizinhos árabes.

Relativamente a estes outros estados Israel tem logrado “manietá-los” paulatinamente; assim cada vez que um deles assume uma postura de maior evidência ou eventual tentativa de liderança sobre os restantes, algo os reconduz a uma posição de inferioridade. Foi isso que aconteceu com o Egipto que desde a Guerra do Yom Kippur, em 1973, abdicou de novos conflitos com Israel (opção que viria a cimentar nos Acordos de Camp David) pelo que tem vindo a beneficiar de um tratamento benigno por parte da comunidade internacional. A Síria, menos disposta a concessões, continua a ver parte do seu território (a área estratégica dos Montes Goulan) ainda hoje ocupado por Israel e sofre constantes ameaças por parte dos EUA, enquanto o Iraque viu, em 1981, o seu território bombardeado por Israel com o objectivo de destruir um reactor nuclear em construção e vê-se agora ocupado pelo exército americano e a viver uma situação muito próxima de uma guerra civil.

Até por este historial, não é de estranhar que o país que mais tem ameaçado recorrer a uma acção militar contra o Irão seja os EUA, sempre sob uma constante pressão judaica expressa em regulares declarações de dirigentes judaicos (que ameaçam que a sua aviação se encarregará disso) se os EUA não puserem cobro à “loucura” iraniana.

Opinião diversa desta expressou hoje o jornalista Vicente Jorge Silva, num artigo de opinião incluído na edição do DIÁRIO DE NOTÍCIAS, no qual classifica o silêncio norte-americano como fruto do enfraquecimento da posição daquele país e da Inglaterra face à situação caótica que se vive no Iraque ocupado. Já o quotidiano pan-árabe “Al-Quds Al-Arabi”, citado pelo COURRIER INTERNATIONAL, afirma que «Teerão poderá renunciar temporariamente às suas ambições nucleares em troca do reconhecimento do seu papel predominante no Iraque. O Irão tornar-se-ia assim uma potência regional incontestável, juntando aos seus recursos petrolíferos as riquezas do subsolo iraquiano».

Seja qual for o desenvolvimento que este caso venha a registar e porque continuo convicto da plausibilidade da minha formulação, termino recomendando a leitura de outro artigo de opinião do DIÁRIO DE NOTÍCIAS, assinado pelo Profº Adriano Moreira, que reflecte bem o estado a que tudo isto chegou…

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